“Eu sou semente forte. Pode mandar me asfaltar. Eu vou brotar.” – é assim, com essa mensagem intensa, que começa o EP Gratitrevas, da ÀIYÉ, projeto da multi-instrumentista Larissa Conforto, que estreia em seu primeiro trabalho como artista solo. Antes, ela fez parte da incrível banda Ventre, um power trio do Rio de Janeiro em que era baterista. A banda acabou, Larissa foi morar em Lisboa e se reinventou em um grande processo de autoconhecimento que gerou um disco muito pessoal e exposto – e, por isso mesmo, muito verdadeiro, autêntico e tocante. A começar pelo nome: “ÀIYÉ” é uma palavra que tem origem na mitologia iorubá e significa terra, mundo físico, paralelo ao mundo espiritual. A imersão da artista nas religiões de matrizes afro (nesse caso, a Umbanda) foi, inclusive, uma grande inspiração para o trabalho, lançado pela Balaclava em março. A música de abertura de versos tão fortes, aliás, é uma homenagem dela à saudosa avó Isis, que nasceu no meio do Rio Amazonas. “Semente” foi a primeira música que Larissa compôs e a última do álbum a ficar pronta.
Gratitrevas conta com gravações feitas no Brasil e também em Portugal (inclusive no estúdio Estrela, de Marcelo Camelo) e é todo feito por Larissa: composição, produção (em parceria com Diego Poloni), vocais, percussão. Com letras reflexivas em português e muitas camadas sonoras, o trabalho chega a lembrar a dupla franco-cubana Ibeyi, que compartilha desse mesmo universo inspiracional. É um som bem experimental e eletrônico, com muitas pitadas de jazz e música afro-brasileira (como samba, funk carioca e pontos de Umbanda), muito menos rock do que era a Ventre, mas igualmente progressivo, lindo e viajandão, e ainda contando com a grata surpresa de ter Larissa como vocalista principal, fazendo bonito na função. A faixa “O Mito e a Caverna”, com participação de Vitor Brauer, tem rimas hipnóticas revelando mais um lado dela como poeta e rapper, acompanhada de uma bateria impressionante que já era característica conhecida sua.
Eu amei o nome irônico e ácido “Gratitrevas”, em alusão ao termo – que já virou até meme – “gratiluz”. Não que ela não seja good vibes, mas é uma mensagem mais pé no chão, que enxerga o lado positivo mas também aponta para o caos, sem aceitar o que não se deve. E, além de ouvir o EP muitas vezes, descobrindo novos detalhes a cada audição, porque é um trabalho interessantíssimo, ainda tive a oportunidade de conversar com Larissa sobre seu trabalho e sobre como ela está enfrentando essa época maluca de pandemia mundial.
Confira abaixo a entrevista exclusiva para o Audiograma!
BM – Como está sendo para você essa época de quarentena? Voltou a morar no Brasil? Sente que isso afeta seu trabalho e sua criatividade?
Larissa – Aqui já estamos há dois meses em isolamento, depois de altos e baixos, buscando um equilíbrio entre o autocuidado e a preocupação com o que se passa do lado de fora. Estou hospedada na casa de amigos no centro de São Paulo, então, ainda estou descobrindo como criar aqui e agora, mas sou grata de estar num lugar cheio de amor com pessoas maravilhosas. Eu tinha uma turnê internacional de lançamento do EP marcada e vim pra São Paulo justamente para fazer esses shows! Foi muito difícil ter que cancelar a turnê inteira, principalmente porque os shows são minha única fonte de renda e o EP foi feito de forma totalmente independente, sem nenhum recurso ou patrocínio, então eu esperava recuperar o investimento na estrada. Ainda não tenho noção de como isso vai impactar a minha vida daqui pra frente, mas nesse momento a coisa mais importante é manter a saúde mental, física e espiritual em dia para lidar com os novos desafios que se apresentam. Estou tentando aproveitar o outro lado de estar em casa com tempo, algo que eu não vivia há anos. Estou cozinhando bastante, lendo muito, escrevendo em papel, cuidando das plantas e aprendendo sobre os ciclos delas, conversando com as pedras, meditando, alongando…o tempo é outro, e desacelerar é uma dádiva. A gente precisa olhar pras coisas belas que nos rodeiam e ver valor nelas. Precisamos nos nutrir da parte boa, porque já basta de medo, preocupação e raiva.
Como a Umbanda influenciou na criação do “Gratitrevas”? Foi dela que veio o nome ÀIYÉ também?
Pra mim, Umbanda é muito mais do que uma religião. É uma prática revolucionária. Ela resgata a nossa consciência ancestral, trazendo a memória dos povos originários e das camadas marginalizadas da sociedade como instrumento de cura e união. É uma cultura que agrega, que mistura, que ensina o respeito e o amor através das diferenças, da diversidade, do entendimento da unidade que há na multiplicidade, e vice versa. Nos conecta não só com o passado, mas com a construção de um futuro conectado com as forças da natureza, e com o conhecimento profundo daquilo que não se pode ver. O encontro com a Umbanda foi um ponto de virada na minha vida, que mudou minha relação comigo mesma, com a espiritualidade e com o planeta. Aos poucos me inundou, me carregou no colo, e hoje me fortalece. O nome ÀIYÉ é de origem Yorubá, e vem de lá, sim. Fala da terra, do mundo físico, o outro lado de Orun, o mundo espiritual. Gratitrevas é fruto do meu processo de autoconhecimento e cura através da espiritualidade. O EP reflete minhas vivências dentro e fora da Umbanda, em um período de transformação muito forte pra mim. É um misto de luz e sombra com muitas camadas.
O clipe de “O Mito E A Caverna” relembra vários casos graves de violência, como o holocausto, a queimada da Amazônia, Brumadinho e Mariana, incêndio do Museu Nacional, os 80 tiros que mataram Evaldo Rosa e Luciano Macedo, além da eleição de Bolsonaro (que também é envolta em uma série de violências). Qual foi a inspiração para essa música, principalmente sua letra, e para o clipe? Que mensagem você quer passar? Porque eu identifiquei toda a crítica política, mas também uma crítica social/desabafo de autoconhecimento, sobre saber impor seus limites, aprender a dizer “não”, que sabemos não ser nada fácil.
Sim, você captou tudo! Essa música é uma crítica ao discurso de poder que rege o mundo hoje. Ela descreve uma cena onde muitos corpos estão empilhados, entre fogo, suor e lágrimas, que são incapazes de se mover dali. Até que um grito ecoa em todos os ouvidos (“Não”) e desperta a possibilidade de mudança. A letra e o título são baseados no mito de Platão, “A alegoria da caverna”, do livro “A República”. Esse livro e esse mito em especial descrevem a construção da ideia de república, dentro do pensamento grego, que são os pilares teóricos da nossa organização política e social. A ideia é fazer um paralelo desse mito com a construção de outro ~Mito~, que hoje desgoverna e assombra o Brasil; diretamente relacionado às catástrofes socioambientais provocados pela mão humana nos últimos tempos. E, por final, sugerir que nós somos capazes de mudar as coisas, se formos capazes de fazer isso juntos. Porque, afinal, essas velhas ideias são a fonte de todo machismo, racismo, LGBTQI+fobia, e tantas outras questões que nos dividem, para que, assim, sejamos dominados. O clipe partiu de uma performance que eu desenvolvi dentro de uma residência artística no Oi Futuro. Eu queria construir uma visão do mundo como está agora a partir de notícias, vídeos e imagens da internet e navegar por elas de forma caótica, exatamente da maneira que a nossa relação com a internet é. O exercício da política hoje se baseia no rolar dos dedos do smartphone. A maioria da população só acessa a internet através dos aplicativos “gratuitos” que os pacotes de internet oferecem. E, por eles, acessamos diariamente a diversos conteúdos que provocam medo, ultraje, raiva e desejo. A gente é bombardeado com esses estímulos todos os dias e seguimos girando a máquina, rolando o feed. Entende como essas cenas se relacionam? Acho que essa música é um chamado para acordarmos (assim como penso nessa pandemia como um chamado para acordarmos)! Não à toa, eu encerro o EP com a provocação, em inglês e espanhol: “o que vamos fazer para despertar?”. É preciso encarar a sombra para encontrar a luz. Temos agora essa oportunidade!
Por que você quis colaborar com o Vitor Brauer?
O Vitor é um grande amigo. A vontade de fazer música junto surgiu quando fizemos uma turnê em dupla em 2018, tocando músicas dos meus projetos e dos dele, durante pouco mais de dois meses dirigindo um corsa 96 pelo sul, sudeste, centro-oeste e nordeste do Brasil. Dividimos muitas vivências fortes nessa estrada, e acho que essa letra reflete muito das idéias que trocamos no percurso.
Foi muito difícil se lançar em carreira solo depois do fim da Ventre?
É, sim, um desafio enorme sair em carreira solo depois de 29 anos criando em coletivo. Eu não escondo de ninguém que o fim da Ventre foi pesado pra mim, mas não foi nem de longe a parte mais difícil, MESMO! Hoje eu percebo que esse hiato foi uma dádiva. Afinal, senão eu poderia demorar mais trinta anos para começar a trabalhar em minhas composições (risos)! Mas a vida é isso aí, né? A gente mergulha, afunda e volta pra superfície de novo. Que bom que todo fim carrega um começo e todo começo tem um fim. Imagina só ter que lidar com a eternidade (risos)?!
Você sempre teve vontade de se apresentar como vocalista além de baterista?
Olhando para trás, hoje, eu diria que sim. Mas antes eu não sabia disso! Era tão inconsciente que talvez eu volte atrás agora e diga que não! Nem sempre eu tive vontade de me apresentar como vocalista, embora essa vontade me acometesse algumas vezes, e a rotina da vida não me permitia perceber antes. Mas tudo bem, porque tudo isso me trouxe até aqui, e todas as coisas tem o seu tempo, nunca por acaso. “Amor fati”, sempre! Que bom que eu pude viver isso agora. Tomara que ainda dê tempo de trabalhar mais um monte de outras coisas que estão na fila (risos).
A mudança para Portugal trouxe com ela que tipos de desafios? Como é fazer arte em outro país? Teve amigos brasileiros te apoiando lá?
Foram muitos desafios, desde sentir na pele o que é ser imigrante na Europa, num país extremamente xenófobo, machista e conservador – acreditem, a discussão sobre feminismo, colonização, racismo e até sobre religião está muito atrás da nossa, por mil motivos – até o desafio de construir do zero uma “carreira” num lugar totalmente novo e desconhecido. A minha a sorte foi contar não só com brasileires muuuito maravilhoses (a gente vai aprendendo a se cuidar, e aos poucos eu também fui cuidando dos novos que chegavam), mas também ter, logo no início, encontrado grupos de ativismo muito mistos, com pessoas de todas as nacionalidades, que se apoiam mutuamente. Eu morei em três casas diferentes, duas de brasileires e a última com uma polonesa, um paquistanês e um libanês. Eu era a única que falava português na casa (risos)! Acho que a música também é um fator agregador, que faz muita diferença. Naturalmente, a gente vai se conectando com outros artistas e vai criando um círculo de amizades e apoio daí. Eu aprendo muito estando em Lisboa, e sou muito grata por isso, mas percebo que quanto mais tempo fico fora, mais sinto falta de algo que permeia a minha essência, que é a vivência social brasileira. Nossa cultura vem de raízes tão profundas e complexas, nossa história tem traços que nos marcam de um jeito só nosso, e isso não se compara. As vezes damos pouco valor ao que somos e de onde viemos. Por isso, eu acho que nunca vou conseguir ficar muito tempo longe. Tenho sempre que voltar, pra recarregar, pra me sentir parte, para fazer parte. É muito difícil estar lá com tudo isso acontecendo aqui. Eu sofri muito, talvez mais do que agora, que estou aqui vendo e vivendo.
Pode indicar artistas portugueses legais que você conheceu lá em Lisboa pra gente ouvir?
Oba, claro! É diferente porque a grande maioria das bandas portuguesas cantam em inglês, acho que por uma lógica europeia. Vou fazer um apanhado das minhas favoritas, entre português, inglês, instrumental: Surma, HAEMA, peixe:avião, Paus, Sensible Soccers, Ditch Days, Afonso Cabral, Bruno Pernadas, Maria Reis, o último disco da Isaura, “Agosto”, o último do Benjamin, “1986”, o trio Vaarwell, os rappers Orelha Negra, Capicua, Sir Scratch…e ainda tem o poperô português que eu amo! Conan Osiris é tudo, Murta.
Escute as dicas dela nessa playlist especial que a gente montou:
Morar em Portugal te inspirou para compor novos sons também?
Com certeza. Principalmente no processo de descoberta de novos sons, de experimentação eletrônica, desenvolvimento de linguagem…e também na relação com outras artes, para além da música. Em Portugal, eu tive a oportunidade de colaborar com artistas de áreas muito diferentes, que acabaram me abrindo novos canais e antenas. O acesso a galerias de arte, exposições, performances e jams experimentais é tão grande, e isso é tão básico, que o fazer artístico é completamente diferente. É outra lógica, outra forma de consumo, outro papel na sociedade, outro tempo, outro espaço. Acho que essa nova forma me inspirou muito a me reinventar, também. Um exercício de desapego e reconstrução. Faz bem ser um papel em branco de novo. Sem reputação, nem boa nem má… Pode ser libertador, embora às vezes seja assustadoramente perigoso!
Apesar da quarentena e do futuro ainda muito incerto, com dificuldades em fazer planos, quais são os próximos passos da ÀIYÉ? Pretende lançar mais clipes, fazer shows online? No segundo semestre já tem show ao vivo marcado?
São muitas incertezas, e eu tô experimentando aceitar isso! Eu tinha uma turnê grande marcada e ainda não entendi como retomar isso. Por enquanto estou editando dois clipes e me organizando pra voltar a produzir aos poucos. Vou dar uma oficina de Ritmo e Compasso no projeto Girls Rock Camp, que amo muito, e fiz minha primeira live de show dia 22 de abril no festival #ElasNaCatraca, uma parceria da SÊLA com a Catraca Livre, que reuniu em 4 dias uma programação de música inteiramente feminina. Por enquanto é isso! Tô ensaiando tudo e focando no auto cuidado, amor, leitura e tarot. Em maio eu faço aniversário e eu quero de presente que o presidente renuncie! O resto a gente vai resolvendo, pouquinho a pouquinho… [Quinta-feira, dia 21/05, ela também faz uma live na Semana Balaclava dentro do programa “Tem Um Gato Na Minha Vitrola”, do Pedro Antunes, editor-chefe da Rolling Stone Brasil. Vai rolar às 17h aqui.]
Voltando ao seu primeiro disco solo, como foi feito esse vocal que fecha a “Astrosoma (Wake Up)”? Ele é invertido? Achei muito louco!
ADOREI a pergunta (risos)! É invertido sim, eu uso um efeito que se chama Reverse na minha voz. Como eu repito “What are we gonna do to wake up / Qué vamos hacer para despertar”, em inglês e espanhol, achei que invertido pareceria uma terceira língua, tipo e soa às vezes como latim. Eu gosto do mistério estético que a voz invertida provoca. Carrega algo sombrio, não acha? Lembra aquela história comum nos anos 90 de que vários artistas teriam pacto com o diabo e botavam isso em letras invertidas nas suas músicas?
Você gravou tudo sozinha tipo o Dave Grohl no começo do Foo Fighters? Como foi essa experiência de manufatura do álbum? 8 faixas eu acho que já deixa de ser EP, né?
(Risos) sim e não, quem dera ser Dave Grohl, imagina! Eu compus as músicas já no Ableton, e fiz as bases e as prés todas sozinha na minha antiga casa em São Paulo. Cada música foi saindo de um jeito, com recursos diferentes, mas era tudo bem rudimentar. Então mostrei pro Diego Poloni, com quem dividi a produção do EP, e muita coisa saiu desse nosso encontro, também, inclusive letras novas, melodias… eu que fiz, mas ele estava junto, dando suporte. O Vitor nessa época me mandou a parte dele da letra de “O Mito E A Caverna”, que eu fui terminar bem depois, em Lisboa. Em seguida, levei esses projetos para Portugal comigo, e fui mudando, adaptando, transformando de acordo com as experiências lá. Em Lisboa, tive a oportunidade de gravar baterias no estúdio do Marcelo Camelo, durante as gravações do disco novo do Cícero. Mais tarde convidei o Hugo [o Hugo era baixista da Ventre] que contribuiu com efeitos e delays à distância em “Sombra” (e me fez mudar o arranjo todo) e o Gabriel Ventura, que gravou guitarras (também à distância) em “O Mito E A Caverna”. Chegando no Brasil, tive a participação ilustre da Aline Gonçalves no Rhodes de “Semente”, juntamente com o Quarteto cAis, que gravou cordas que acabaram não entrando, mas vão entrar no próximo! Contei com a ajuda e apoio de muitas pessoas nesse processo, tanto na parte técnica (especialmente Bruno Schulz, meu parça que esteve comigo em todos os momentos), mas também na produção, na assessoria e no lançamento. Eu ainda acredito que nada se faz sozinha, e sou muuuuito grata por todos os encontros e abraços que esse EP gerou. Foi o melhor que consegui fazer, considerando as adversidades e a falta de recursos. Sei que é um processo, e esse é só o começo pra mim. Tem muito pra lapidar e aprender!
Siga ÀIYÉ: