Uma das definições mais corriqueiras que envolvem a arte é a de que ela “é a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada a partir da percepção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”. Nesse sentido, poucas bandas sintetizam tanto esse enunciado como o La Dispute, grupo de Michigan, EUA, que acaba de lançar o seu quarto álbum, chamado Panorama. Os músicos são conhecidos por utilizarem de elementos artísticos específicos, sendo capazes de entregar trabalhos extremamente catárticos e singulares, algo que ocorre também no novo disco.
Panorama surge em um estágio de mudanças para a banda liderada por Jordan Dreyer. O La Dispute assinou com a Epitaph Records, uma das maiores gravadoras ligadas ao punk rock; além disso, houve a saída do guitarrista de longa data Kevin Whittemore, que acabou sendo substituído por Corey Stroffolino. Coincidentemente ou não, o álbum é o menos agressivo do quinteto em relação a arranjos de guitarra. Há muito mais destaque para a percussão, ruídos quase imperceptíveis e a vocação para contar histórias de Jordan. Aliás, a obra é praticamente uma compilação de poemas líricos e narrativas românticas, com influências claras da literatura nas suas composições.
Esse tipo de estética já foi trabalhada pelo La Dispute, já que todos os seus discos e especialmente o último, Rooms of the House (2014), abordavam histórias do dia-a-dia, numa espécie de conto. Porém a diferença de ROTH para o recém-lançamento está no fato do segundo ser realmente sobre fatos reais, literalmente um panorama geral sobre dor, perda, amor e frustrações dentro de uma rotina.
Todos os fatos são baseados em histórias que a parceira de Jordan contou enquanto os dois viajavam entre Grand Rapids (cidade natal de Jordan) e Lowell, sendo esses relatos sobre pessoas que habitam/habitavam o local onde a respectiva mulher cresceu. Como um narrador onisciente, o La Dispute aborda todas essas histórias de forma não cronológica e às vezes não lógica; assim como em um livro, é necessário atenção e dissecar cada detalhe para entender o que se passa em Panorama.
O elemento que torna Panorama um divisor de opiniões é sem dúvidas o seu instrumental, que na maioria do tempo é silencioso – talvez até de forma intencional, transformando o ambiente do álbum em algo mais sombrio. Esse tipo de canção não é novidade em relação à banda, já que dois dos seus maiores sucessos – “Woman (in mirror)” e “Woman (reading)” tem a mesma característica. Porém, esse lado polido e menos selvagem mais presente no novo álbum pode não agradar os fãs mais antigos, acostumados com a sonoridade de Somewhere at the Bottom of the River Between Vega and Altair (2008) e Wildlife (2011).
Após uma intro ambiente e silenciosa com “ROSE QUARTZ”, “FULTON STREET I” e “FULTON STREET II” dão início à experiência sendo dois paralelos de um mesmo assunto, no caso, o luto da pessoa com a qual você se importa. Na segunda faixa do disco, há a perspectiva de quem não está particularizado com esse tipo de situação (“Could I go and leave flowers by the street?”), em meio a uma melodia intuitiva com um vocal desesperador. Já a terceira música é mais agressiva, porém mais clara enquanto as intenções do personagem (“I will be the one who chases you out in the snow/Go where you tunnel down and the trouble starts/I will follow you out and carry all the pain away”).
“RHODONITE AND GRIEF” e “ANXIETY PANORAMA” também funcionam de forma dual, apesar de serem semelhantes melodicamente, isso é, com poucas guitarras, palavras ditas de forma medida e consequentemente um tom mais intimista. Enquanto que “RHODONITE AND GRIEF” busca por meio da metáfora da rodonita (que segundo a crença popular, pode curar dores emocionais) reafirmar o que a faixa anterior dizia, isso é, estar do lado da pessoa amada e ser seu suporte, “ANXIETY PANORAMA” é exatamente o que o nome da canção supõe: um desenho sobre como momentos difíceis de uma relação se tornam também um grande campo minado, que não se sabe onde deve pisar (“You pray for distance/I never change/Buried it behind the brightness”).
“IN NORTHERN MICHIGAN” realça o caráter literário de Panorama, e também o tema do luto em versos como “Dream if you want for me to carry on/If you could break it all down for me”. Já “VIEW FROM OUR BEDROOM WINDOW” e “FOOTSTEPS AT THE POND” são as músicas do álbum com arranjos mais pesados e também com os vocais mais agressivos de Jordan, abordando o ápice e o declínio de uma relacionamento desgastado por invariáveis problemas (“I guess I needed you to freeze me up/Those corners of your dreams/I guess I needed me to leave”).
“THERE YOU ARE (HIDING PLACE)” detalha o que é ser corroído pela rotina (“I was afraid to die/A better you inside of me”), iniciando a parte final do disco com sua vibe mais post-rock, confirmada por “YOU ASCENDANT”. A última música se constitui de forma épica, enquanto lista diversos pensamentos sobre vida após a morte (“When the end comes will we see bright lights burst through the evergreens?/Feel the blown sanda t our ankles or hear rustling needles in the breeze?”). Uma experiência que é ao mesmo tempo mórbida, angustiante, transformadora e bela.
Por conta da sua densidade e complexidade, o disco acaba despertando uma reflexão muito particular de cada pessoa, sendo um trabalho muito mais sensorial do que propriamente técnico. Mas isso não é uma crítica; a função da arte não é apenas dar significado único e diferente em relação à obra, mas transmitir esse significado de forma que transforme o interlocutor. Sendo assim, por meio de melodias emotivas e natureza literária, o La Dispute consegue exibir em Panorama o belo e o horror de nossa existência da forma mais artística possível.
La Dispute – Panorama
Lançamento: 22 de Março de 2019
Gravadora: Epitaph
Gênero: Post-Hardcore / Rock Alternativo
Produção: La Dispute & Will Yip
Faixas:
01. ROSE QUARTZ
02. FULTON STREET I
03. FULTON STREET II
04. RHODONITE AND GRIEF
05. ANXIETY PANORAMA
06. IN NORTHERN MICHIGAN
07. VIEW FROM OUR BEDROOM WINDOW
08. FOOTSTEPS AT THE POND
09. THERE YOU ARE (HIDING PLACE)
10. YOU ASCENDANT