Antes mesmo da noite começar, antes mesmo de sequer entrar no Espaço das Américas, o público presente na Barra Funda tinha uma dimensão do que seria aquela noite de domingo, dia 14 de outubro.
Ter a chance de ver Nick Cave ao lado do The Bad Seeds é uma experiência única, algo que eu estou a quase dez dias tentando traduzir em palavras para contar por aqui e ainda não tenho muita certeza do que dizer.
Desde os primeiros acordes de “Jesus Alone”, era claro que a noite se dividiria em diversos sentimentos. A faixa, que abre o álbum Skeleton Tree, é o primeiro contato com a obra totalmente inspirada pela dor de se perder um filho. Nick Cave traduziu esse momento devastador de sua vida em oito faixas – com quatro delas sendo tocadas ao longo do show: a já citada faixa de abertura, “Girl in Amber”, “Magneto” e a minha preferida, “Rings of Saturn” – e lançou aquele que, pra mim, é o melhor álbum de seus últimos 15 anos.
A dor também estava presente no palco: um teclado vazio que era utilizado pelos músicos ao longo do show nos remetia ao grande Conway Savage, tecladista da banda que faleceu em setembro por conta de um tumor cerebral. O músico foi lembrado antes do show começar e teve uma foto mostrada no telão da casa.
Aquele era o primeiro show de Nick Cave no Brasil em quase trinta anos e, além do longo período de espera, parecia ser um show de reconciliação do músico com o país e a cidade na qual morou no início da década de noventa.
Era visível em Nick que aquele era um momento especial e comovente. “Higgs Boson Blues” foi responsável pelo primeiro momento de êxtase do público, que mergulhou de cabeça sem medo do que viria a seguir. Para isso, nada melhor do que todo o carisma de Cave, que era o responsável por guiar as quase oito mil pessoas por uma incursão espiritual ao longo das vinte faixas apresentadas. Como acompanhamento, uma das bandas mais competentes que eu já vi nessa vida.
Aliás, falando da banda, é quase impossível não se hipnotizar pelo multi-instrumentista Warren Ellis e toda a fúria com a qual tocava guitarra, piano e, principalmente, violino. Era quase que um “rival” para Cave quando o assunto era ganhar a atenção do público e, por diversas vezes, me peguei observando aquilo maravilhado e, ao mesmo tempo, aguardando pelo momento em que aquele violino se transformaria em mil pedaços, algo que não ocorreu.
Um dos momentos mais belos da noite foi em “Into My Arms”, faixa dedicada ao Brasil e na qual Nick Cave foi para o piano tentar fazer o público acreditar no amor em tempos difíceis. Foi quando as primeiras lágrimas rolaram por aqui e era apenas a metade daquele culto.
Outros momentos grandiosos da noite que se seguia ficaram por conta de “Jubilee Street” e de “The Weeping Song”, na qual Nick Cave foi para uma plataforma no meio da pista, afirmou que esse era um momento no qual “precisamos rezar pelo Brasil” e, ainda que meio acanhado, deu voz para o público que protestou contra Jair Bolsonaro. Após alguns gritos favoráveis ao candidato, Nick se juntou a grande maioria presente no Espaço das Américas e também soltou o seu “ele não”.
O show ainda teve parte do público subindo ao palco para “Stagger Lee” e a incrível “Push the Sky Away”, talvez uma das músicas mais esperadas por mim naquela noite. No bis, “City of Refuge”, “Mercy Seat”, “Jack the Ripper” – faixa que Nick revelou ter sido escrita enquanto ele morava em São Paulo, na Vila Madalena – e a maravilhosa “Rings of Saturn”, que foi a responsável por encerrar aquela noite especial.
Envelhecendo como um bom vinho, Nick Cave segue evoluindo, encantando e nos brindando com uma brilhante trajetória musical. Como bem lembrou a amiga Juliana Vannucchi, Nick mantém viva a sua essência punk do começo da carreira e se entrega totalmente à energia do público.
Pulou em cima do palco, chutou e derrubou o suporte do microfone, se jogou no chão, conversou e abraçou os fãs, deixou elas cantarem trechos de músicas, andou no meio plateia, se posicionou politicamente e abriu espaço para posicionamento do próprio público, transformando tudo aquilo em um momento mágico e de quase exorcismo coletivo.
A minha espera de quase dez anos para ver Nick Cave ao vivo foi paga com juros e correção e, ainda que esse texto esteja chegando ao fim, sinto que não consigo explicar bem o que foi aquela noite. Por mais que caiba aqui, dizer que esse foi um dos melhores shows da minha vida ainda não me parece o suficiente para traduzir aquela noite de domingo.