A busca por autoconhecimento realmente mexe com a gente e, em um mundo que muda cada vez mais depressa, se reinventar virou questão de sobrevivência. Um grande exemplo disso é a carreira de Tchella, artista paulistana que, depois de já ter se estabelecido como atriz, se descobriu cantora e compositora e resolveu investir também (afinal, por que não?) na música.
Hoje, ela está lançando Transmutante, seu primeiro álbum, feito com muito cuidado, esmero e de forma totalmente independente. O processo levou dois anos desde a fase de pré-produção.
Acompanhada por músicos muito talentosos (Pedro Lauletta na bateria, Paco Nabarro na produção musical e arranjos e Lucas de Sá no baixo) , Tchella passou pelos estúdios Sambata, Magi Batalha, Sala B e Lab de Sá, pensando no que pedia o som de cada instrumento. “A sala maior do Sambata era ideal para captar a bateria, por exemplo”, explica ela. O técnico de som responsável por todas as captações, Fernando Sobreira, também ajudou na co-produção.
O álbum conta ainda com a participação do pianista cubano Pepe Cisneros, do guitarrista André Hemsi, de Antonio Dantas no bandolim e violão de aço e Michelle Eufrasio com violino.
O disco teve pré-estreia no programa Sons do Brasil, da Rádio USP, no último domingo; e agora chega a todas as plataformas digitais. Diverso como manda o título, Transmutante mistura soul, rock, pop, indie, MPB e funk e os vocais são surpreendentes e versáteis.
Escute:
O disco virtual está sendo distribuído pela Galeão, antigamente conhecida como Velas, gravadora fundada por Victor Martins e Ivan Lins.
No final de junho, o álbum também vai ganhar uma versão física que será vendida no site de Tchella e enviada como recompensa para alguns apoiadores do financiamento coletivo feito após as gravações para cobrir os custos de pós-produção.
A arte da capa (abaixo) foi feita por Luiza Braga, artista de Limeira; e a maquiagem das fotos de divulgação foi feita por Gisele Braga. “Eu percebo que existe um movimento de fortalecimento das mulheres dentro do mercado artístico e da música. Fiz pós-graduação em canção popular e nesse momento decidi que era a hora exata para fazer meu trabalho e me lançar na música. Infelizmente a maioria da minha equipe é masculina, assim como no curso. E isso pra mim era novo, porque eu venho do teatro e lá a maioria são mulheres. Mas em momento algum me senti desafiada. Pelo contrário, me senti bem por ser uma mulher liderando uma equipe e sendo muito firme em todas as etapas”, conta Tchella.
Confira abaixo a entrevista exclusiva para o Audiograma.
Quais foram suas inspirações para escrever?
A maioria das músicas nasceu entre 2012 e 2013, em uma fase muito difícil da minha vida. Me desiludi muito com o mercado artístico e estava saindo do teatro. Tinha de 22 para 23 anos e trabalhava como atriz desde os 12 – profissionalmente, desde os 17.
Eu trabalhei muito, ganhei um bom dinheiro e me formei em artes cênicas, mas me decepcionei demais com o mercado. Também tive uma experiência de ir morar em Curitiba que não deu certo. Voltei para São Paulo sem dinheiro e desempregada, mas sabia que não queria mais fazer o tipo de atuação que fazia antes. Foi o momento de repensar em como eu estava levando minha vida.
Das 10 canções do disco, 8 são minhas e 6 delas são dessa fase. Me sentia perdida e comecei a querer ficar sozinha, não confiava mais nas pessoas, fiquei muito dentro de casa e aí comecei a compor. Fiz umas 40 músicas nessa época. Algumas letras são sobre fé, sobre precisar acreditar que existe alguma coisa maior, buscando forças e tentando entender o que está acontecendo, que tudo tem um por que, por mais doloroso que seja.
Você sempre gostou de música? Quando começou a tocar?
Estudei teclado quando tinha 12 anos, em conservatório mesmo. Violão eu aprendi no teatro, assim como alguns outros instrumentos. Em nenhum momento eu quis deixar de ser atriz. Nunca deixei de ser. Só não queria mais trabalhar daquela forma. Eu estudei música antes de começar no teatro e, como atriz, sempre trabalhei muito com música também. Isso aliás foi bom para mim, ajudou a abrir portas e conseguir mais oportunidades, pois eu tinha mais habilidades.
Por que Transmutante?
Na minha própria carreira, eu transmutei por diversas expressões. Trabalhei no circo por um tempo, fiz cinema, publicidade, teatro, performance, música. Estar sempre em movimento transitando entre diversas áreas me motiva muito. Poder me transfigurar e me colocar no lugar de outra pessoa, de outra personagem.
As músicas também são muito diferentes entre si, falam de sentimentos diferentes. Eu me coloco nesse lugar de poder interpretar e dar voz a cada uma delas, expressando estados diferentes. “Indisciplinada”, por exemplo, é zero autobiográfica. Não tem nada a ver comigo e com a minha vida, é uma historia que inventei. Com as músicas que não escrevi e entraram no disco foi a mesma coisa. Interpreto do meu jeito, fazendo a canção passar por mim. Acho que só faria sentido se eu realmente me colocasse.
Isso também influenciou a imagem e a parte visual do trabalho?
Sim. Pesquisei muito a questão da transmutação, quem eu sou e também a questão espiritual. Tem algumas músicas em que falo disso, de se transmutar e também de outras dimensões no mundo, iluminação. Roxo e lilás são as cores da espiritualidade e desde o começo imaginei a paleta de cores que é um degradê, o universo, seres de luz. Pensar que nós também somos seres de luz e na energia, no astral.
Quais são suas inspirações?
A cantora que mais me inspirou a vida inteira foi a Elis Regina. Ouvi muito na adolescência e no começo da juventude e aí percebi que queria cantar. E ela traz muito isso de se emocionar cantando, transformou os shows em espetáculos. Gosto muito da Maria Bethânia também porque ela tem esse lado intérprete. Na pós, aprendi que muitas cantoras da música popular brasileira também eram atrizes. As pessoas sempre me falaram que eu tinha que escolher entre uma coisa e outra, que eu não podia ser cantora e atriz, mas eu posso sim.
Quando descobri que muitas artistas antes de mim fizeram o mesmo isso me fortaleceu, me trouxe paz. Literatura também tem muito a ver, porque compor canção é também contar uma história, lidar com a palavra. Foi ali que me encontrei. Eu também gosto da Elza Soares, que é maravilhosa; da Pitty, Tulipa Ruiz, Carmen Miranda, que foi outra mulher forte, desbravadora e pioneira; Rita Lee que é uma grande compositora, Alicia Keys, Chico Buarque e Itamar Assumpção.
O que mais te atraiu na música?
De tudo o que a carreira musical me oferece, o que eu mais gosto é de estar no palco. Quero muito poder fazer shows, porque gosto muito de encontrar as pessoas, conhecer gente nova, trocar energia com elas. O palco também me dá a possibilidade de improvisar e conversar muito. Fiz teatro de rua porque queria estar com as pessoas, estar perto delas.
Quero poder me expressar e passar a mensagem de que nós podemos ser muito mais, ir muito alem de rótulos e nomenclaturas, se permitir transmutar, mudar de opinião, replanejar caminhos, repensar o que se quer fazer. É como uma poda de roseira. Você precisa cortar perto do caule para que ela mude de direção, cresça saudável e forte. Precisamos dizer não para o caminho que não nos faz felizes e crescermos de novo em uma direção na qual a gente acredite, que faça sentido naquele momento.
É uma ruptura do bem.
Isso mesmo. Você é criado em uma sociedade em que tem que se formar, entrar na esteira do emprego, comprar um carro, um apartamento e uma televisão. Isso vira o objetivo de vida das pessoas, acima daquilo que elas realmente querem fazer e sentir. Quando alguém vem e quebra com isso gera apreensão e questionamento, tipo “ei, você tinha um futuro ali, o que pensa que está fazendo?!”. Mas é preciso buscar o que te faz feliz. E são as questões que fazem o mundo mudar. Questões de gênero, mulher, negros, fobias sociais, elas tem de ser repensadas e só serão de fato a partir do momento em que as pessoas se permitirem. Temos que recuar do contexto formado que diz que isso é isso. As mudanças só vão acontecer se e apenas se as pessoas se permitirem mudar. Existe uma chavinha dentro de cada um e, se você não permitir, não muda. Tem que querer.
Assim como você teve que encarar o medo de ser cantora também.
Eu tive que quebrar essa ideia de que só se pode ser uma coisa. Sou atriz e musicista também. E tive que superar algumas inseguranças. Eu achava que as pessoas iam me ver como compositora, mas começaram a falar muito da minha voz. Apesar de já ter feito teatro musical, nunca tinha me enxergado nesse lugar. E quero saber o que as pessoas acham, que resposta o público vai me dar. Até agora o retorno foi muito legal. Eu ouço muito o que as pessoas me dizem, gosto de encontrar as pessoas, faço arte pro meu público e não pra mim. Então minha expressão é o que eu sinto mas quero tocar o outro, me comunicar, conversar.
O que você aprendeu com esse processo todo?
Eu componho, canto, sou atriz e também produtora. Nunca tinha produzido nada antes, fui fazendo e aprendendo na raça com a ajuda da minha equipe. A experiência que tive com produção artística no teatro também ajudou. Eu vou fazer 30 anos e, como trabalho desde muito nova, amadureci algumas coisas. Mas tem muita gente, inclusive eu antes do processo do disco, que acha que é preciso entender muito de música e saber tocar super bem para poder fazer qualquer coisa. Não é verdade. Eu sabia só alguns acordes no violão e mesmo assim escrevi 40 músicas. Ao passo em que fui fazendo, fui aprendendo mais e melhorando. Hoje já toco melhor. Acho que colocar a mão na massa é importante e aprendi que todos podemos criar. A gente precisa se permitir ser livre para ser quem a gente quiser e fazer o que a gente tiver vontade.