Quando escutei o álbum Olhem Para As Ruas na íntegra pela primeira vez, estava lendo um livro de Edgar Allan Poe, chamado As Aventuras de Arthur Gordon Pym. Na medida em que o CD rodava, as canções da banda Gangue Morcego logo me envolveram intensamente, tornando-se uma verdadeira trilha sonora para a minha leitura. Era como se as melodias saíssem das caixas de som e penetrassem decididamente em meu espírito, iluminando minha imaginação e dando vida às linhas escritas por Poe. Fiquei fascinada com esse acontecimento, inicialmente dividida entre duas obras primas e, posteriormente, unida por ambas.
Esse processo de contemplação artística e desligando da realidade externa, descrito acima é natural, é o que costuma ocorrer quando um indivíduo se envolve com uma obra de arte, tal qual me aconteceu comigo. Mas preciso admitir que eu estava mais hipnotizada com as canções da Gangue Morcego do que com a leitura do livro de Poe. Lembro-me que, na ocasião, uma frase do livro fez sentido para mim, e pareceu definir como eu me sentia enquanto escutava o álbum da banda:
“Desencadeou-se em mim, a madura manifestação de uma dessas crises do centro imaginativo, sempre tão temíveis em casos dessa ordem, um colapso do senso de controle que nos leva a antecipar os sentimentos que nos farão cair, a visualizar a náusea vertiginosa, a tontura, a tensão derradeira dos músculos, o semidesmaio e a pungência amarga da queda final e arrebatadora”. (POE, Allan, p.264, 1997).
A Gangue Morcego é formada por Alexandre Matos (vocal), Thiago Halleck (baixo), Daniel Sombrio (teclado), Daniel K. (guitarra) e Mario Mamede (bateria). A história da banda tem dois começos (conforme o próprio Alexandre esclareceu): “Um em 2008, quando montei o rascunho e criei o conceito com esses meus amigos, e em 2012, quando encontrei os parceiros certos para levar adiante e, finalmente, dar a forma final às primeiras músicas”. Esses dois períodos podem ser explicados da seguinte maneira: em meados de 2008, Alexandre, ilustrador e cineasta profissional, que naquela época explorava o universo sonoro do Death Rock, decidiu criar uma banda do gênero, que carregasse conceitos cinematográficos e visuais de cunho expressionista que faziam parte da concepção artística do músico. “Sou cineasta por formação e animador 2D e ilustrador por profissão. Passar as referências visuais e conceituais que abordava na minha arte para a minha música me pareceu natural, ou sobrenatural, é claro! Dessa forma, logo surgiram ideias ligadas ao visual de filmes expressionistas e as animações nada infantis que rolavam antes do cinema de animação encontrar seu público cativo. A Gangue, a princípio, é a tradução em música do que eu sentia quando assistia a esses materiais”.
Em 2012, ele encontrou a formação ideal e seus planos finalmente começaram a engrenar. Mas antes que, de fato, se concretizassem, muitas coisas aconteceram e uma delas, foi o trágico falecimento de um dos membros da banda, Thiago Menescal, baixista que tocou com a Gangue Morcego entre 2013 e 2014, tendo falecido neste último ano. Thiago Halleck contou sobre essa inusitada experiência: “Menescal era um ser humano ímpar e um músico fantástico, apesar da pouquíssima experiência. Porém, ele sofria de uma doença rara e chegou o momento em que ele, infelizmente, não conseguiu resistir. Todos nós somos muito amigos, além de companheiros de banda e, quando algo assim acontece, é totalmente diferente de quando alguém vira e diz “estou saindo da banda”. Pisar no estúdio para ensaiar pode se tornar algo, no mínimo, estranho e desconfortável – ou até mesmo, terrível. Ali, poderíamos ter acabado com a banda, mas acabou sendo um tapa na cara, no sentido de ‘tem que acontecer, porque não acontecer não é mais uma opção’. Ele compôs duas músicas enquanto ia e voltava do hospital, e acabar com a Gangue ali seria, na melhor das hipóteses, um desrespeito para com tamanha dedicação”.
O falecimento de Menescal, no entanto, inspirou a banda na criação da música que, provavelmente, é a faixa mais brilhante, profunda e criativa do álbum, chamada “A Dança Não Para (No Outro Lado Da Lua)”, que é carregada de sentimento e honestidade, resultando numa espécie de homenagem cósmica arquitetada com pinceladas de saudade e amizade e encoberta por uma carga de inspirações hinduístas. Assim sendo, não há dúvidas de que o jovem baixista se eternizou por sua contribuição sonora, e especialmente pela doce recordação que os outros membros demonstram guardam consigo.
O primeiro álbum foi, por fim, lançado na noite de Halloween de 2016. Antes disso, houve certa instabilidade na banda e esse problema interferiu na consolidação e execução das gravações. O álbum foi feito com o produtor Sérgio Filho, que é guitarrista e amigo da banda. Halleck contou que durante o processo de criação do álbum, os membros da banda passaram para Filho, uma lista enorme de influências que possuíam, e, durante uma semana, ele ouviu absolutamente tudo. No final, disse “estou pronto, já entendi o que vocês querem”. A gravação foi feita e levou apenas alguns meses, porque, de acordo com o baixista: “Quando todos já sabem o que se pretende fazer e como se deve fazer, o processo se torna natural e fluido”.
O resultado do trabalho é primoroso. Certamente, a banda criou um dos trabalhos nacionais mais primorosos e profissionais de 2016 (tanto da cena underground, quanto de qualquer outra cena com a qual se queira comparar ou se queira considerar). “Olhem Para As Ruas” é um trabalho traçado por imensa originalidade, composto por um elogiável capricho técnico que desemboca numa sonoridade altamente potente, explosiva, catártica, e que oferece uma aura nascida de mesclas entre temáticas diversificadas, com notáveis raízes provindas tanto do Punk quanto do Post-Punk. É um álbum parcialmente sombrio e parcialmente agressivo, sendo que ambas as características foram dispostas na dose ideal, tornando-o imensamente singular. Além disso, é possível perceber claramente a qualificação individual e talento de cada um dos membros da banda que, juntos, encontraram a harmonia ideal e a assinatura ímpar que Alexandre se empenhou em buscar.
A capa do álbum, desenhada pelo vocalista da banda, também merece menção por sua admirável criatividade e pelo capricho com que foi feita. A imagem é composta por uma série de oito retângulos, e dentro de cada um deles, há um desenho diferente, e segue uma estética baseada em animações dos anos 20/30. Alexandre levou aproximadamente um mês para finalizar os desenhos e contou com sugestões dos outros membros da banda para que pudesse atingir um resultado satisfatório. O músico comentou: “A ideia foi por janelas com elementos que conversam com a Banda e no Centro, o gato preto, referência a nossa primeira música. Ele Olha fixo para frente, como se estivesse trocando olhares com quem está na rua, ou a pessoa que está observando o álbum”.
Ainda em 2016, no final do ano, a banda participou de um tributo brasileiro dedicado ao grupo inglês Siouxsie And The Banshees, fato marcante na carreira da Gangue Morcego. Contribuíram (e muito bem) com a gravação da faixa “Cascade”, originalmente lançada no álbum A Kiss In The Dreamhouse, em 1982. Thiago Halleck comentou sobre o tributo: “Foi um processo bem legal e desconstruir a música na medida certa pra dar a nossa cara, sem descaracterizar, foi um exercício para a nossa criatividade. E ainda teve a participação da Natasha, da The Shorts, que, lá de Curitiba, gravou uns coros que foram fundamentais para conseguirmos textura que buscávamos para a nossa versão”.
Em 2017, fizeram shows em Sorocaba (São Paulo), na capital paulista, no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) e São Tomé das Letras (Minas Gerais). O guitarrista Daniel K. comentou, com entusiasmo, que essa sequência de apresentações tem sido interessante: “Os shows tem uma energia de movimentação da cultura musical bem foda que se expressa tanto no som quanto na galera da cena”. Tive a felicidade de presenciar a apresentação feita em Sorocaba, que ocorreu no final de janeiro. Acompanhei pessoalmente todos os passos dados pela banda, desde que chegaram à cidade, até o término da apresentação que realizaram. No palco, os achei charmosos e contagiantes, sendo que foi durante o show que eles começaram a realmente me cativar. Além disso, há de se ressaltar que o visual da banda é bem interessante: eles usam moicanos, colocam roupas curiosas e bem undergrounds, e alguns dos membros cobrem seus rostos com maquiagens cinematográficas. Tocaram de maneira explosiva, e estavam completamente entregues à ocasião. E, aliás, foi nessa gratificante oportunidade que comprei o meu exemplar do álbum Olhem Para As Ruas.
Atualmente, permanecem ativos, sempre bem dispostos, tocando com competência e integridade. A boa notícia é que a dança não vai parar, pois a banda possui pretensões claras de continuar a gravar. Sombrio nos contou quais são as perspectivas futuras da Gangue Morcego: “Queremos gravar pelo menos mais dois EPs, pois já temos as bases de todo esse material e estamos terminando o processo de composição para fechar as músicas. Nosso próximo disco já tem definido o nome, o set list e também terá oito faixas. Depois ainda sobram umas cinco músicas para um terceiro disco e até lá, com certeza, faremos mais músicas. Somos bem pilhados com isso. Em muitos ensaios acaba saindo algum rascunho de alguma música nova durante os intervalos. Fora o novo material sonoro, iremos começar as gravações de alguns videoclipes das músicas de Olhem Para as Ruas. Enquanto todo esse material novo vai ficando pronto, iremos continuar a turnê e começar a ir apresentando as músicas novas nos shows. Portanto, a galera que sempre nos acompanhar poderá ir testemunhando todo o processo. E será ótimo! Somos uma banda que gosta mesmo é de interagir com nosso público”.
Eu, definitivamente recomendo a banda. Sugiro que seja escutada no último volume, em qualquer ocasião, independente do tempo e do espaço. Posso, com firmeza, garantir que a Gangue Morcego irá transportá-lo para além da matéria, para adiante do limite, para o cosmos, para além do natural, abrindo as portas para o fantástico: “Bom espetáculo para você… Ouvi dizer que a peça é muito bonita!”