Nos últimos dias, o clipe do atual single do grupo Major Lazer, “Sua Cara” – que conta com as participações de Anitta e Pabllo Vittar, tomou conta da internet. Tamanha refutação desbancou “Bon Appetit” de Katy Perry e MIGOS, se tornando assim o vídeo mais assistido do Youtube em 24 horas. Não há outro assunto senão esse.
O vídeo hiper aguardado e rodeado de expectativa foi gravado no Marrocos, no final de junho, com a direção do brasileiro Bruno Ilogti, também responsável pelos clipes de “Bang” e “Paradinha”. De fato, a locação mega comentada pareceu mal aproveitada na edição final do vídeo, com direção fotográfica pouco turbulenta e alternância de takes num nível quase tóxico para os olhos, hora ou outra tudo parece amador demais. Porém, não é isso que me traz aqui hoje…
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Certamente, a alegria de ver dois nomes da música brasileira ocupando o A1 da indústria fonográfica me contagia, ainda mais sendo eles uma cantora de funk e uma drag queen, ambas com origens periféricas. Falando desse jeito, parece até que a igualdade pode hoje, plena, depois de culminar suas própria existência, dormir em paz. Mas não, não demorou muito pro mundo se irritar com o posto que a funkeira e a drag estão ocupando, e é disso que temos que falar.
Começando por Anitta; a cantora que se lançou através de um estilo “funk radiofônico” – aquele com base melody e preferência por letras ambíguas ao invés do tradicional pancadão com linguagem sexual escancarada, até hoje enfrenta a resistência e o preconceito do público brasileiro, mesmo que suas produções atuais pouco assemelhem-se ao funk. O seu último sucesso, “Paradinha” – lead single do álbum de estreia internacional, é uma canção de base Dancehall/Tropical house, que poderia facilmente ser interpretada por cantoras internacionais. Porém, parece que o rótulo de “funkeira” perseguirá Anitta para sempre, pelo menos no Brasil, e isso não é motivo de vergonha, bem ao contrário. É motivo de orgulho poder dizer que uma cantora oriunda de uma expressão popular e contemporânea brasileira está alcançando cada vez mais espaço num mercado extremamente restrito, abrindo a porta para vários outros artistas que outrora se viam sem oportunidades ou um precursor para se inspirar.
Ninguém é obrigado a gostar de funk, mas negá lo como uma autêntica expressão cultural é sinal de ignorância.
Em recente entrevista para a BBC Brasil, a cantora disse que “Primeiro as pessoas precisam buscar entender o país onde elas vivem para depois criticar o funk”, uma verdade absoluta! Vamos lá; segundo o IBGE (2010) 11,42 milhões de pessoas vivem em favelas e regiões urbanas extremamente pobres, e o funk, não exatamente o que Anitta canta, mas o funk dos morros, aquele repugnado por grande parte da sociedade brasileira pelas letras com apologia a criminalidade, linguajar sexual e valorização de um estilo de vida marginal, esse funk, não é nada mais que um retrato fiel da realidade das favelas no Brasil, e se reclamam muito de uma cantora que canta um funk quase eufemista, quem dirá então das funkeiras independentes, sem papas na língua ou pressão de gravadora, como as conhecidas Tati Quebra Barraco, MC Carol, Jéssica do Escadão e Deise Tigrona, que em 2005 cedeu os samples de “Injeção” para M.I.A. e Diplo criarem “Bucky Done Gun”, dando início a visibilidade internacional do funk de favela.
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O movimento drag existe há muitos anos, mas nunca esteve tão em alta como hoje. O tema que rendeu uma estatueta no Oscar de 1995 com The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, ganhou o olhar da nova geração com o reality show americano RuPaul’s Drag Race, mas não pense que esse reality é o único motivo de tamanha visibilidade. Ele é parte de um grande fenômeno, que está diretamente conectado ao fortalecimento que a cultura LGBT+ ganhou com a globalização; graças a internet e o fácil acesso a informação, o que antes se chamava de minoria se tornou uma grande massa, que produz informação, forma opinião e dirige um veículo que age massivamente contra o preconceito. Mas as coisas ainda estão longe de ficar 100% perfeitas e é aí que começamos a falar de Pabllo Vittar.
Vittar superou a emblemática RuPaul em número de seguidores no Instagram; seu álbum, Vai Passar Mal, é detentor de dois smash hits nacionais: “Todo Dia”, parceria com Rico Dalasam que se tornou hit absoluto no carnaval deste ano e “K.O”., que é atualmente uma das músicas mais executadas em rádios do Brasil e plataformas de streaming em todo mundo.
De origem humilde, Pabllo cantou em diversas boates de todo Brasil, ganhou notoriedade como entertainer e fama local através da internet, mas 2017 certamente marcou sua vida; nesse ano a artista conquistou espaço no mainstream, lançou seu debut álbum, dividiu palco com grandes nomes da música brasileira, ganhou o patrocínio do servidor de streaming Apple Music, foi o rosto da campanha de uma gigante do mercado de cosméticos e alçou a sonhada visibilidade internacional com Anitta e Major Lazer, sendo mencionada pela Billboard, a estrondosa publicação musical americana.
Não é necessário vasculhar pela internet pra achar algum comentário maldoso sobre Vittar. A extrema estupidez de alguns chama atenção, com alguns se expondo ao ridículo, buscando justificativas para a intolerância, sustentadas na ideia falha de “orgulho hétero”, “ditadura gay” e até mesmo “heterofobia”. Como se já não bastasse a estupidez desses, a mídia também deu as caras em diversos aspectos, começando pelo boicote no anúncio de lançamento de “Sua Cara”, onde importantes veículos midiáticos creditaram a música somente ao Major Lazer e a Anitta, ignorando totalmente a participação da drag. E não foi só virtualmente, já que o repórter Amin Khader, durante a gravação de uma entrevista com Vittar e Anitta na festa de lançamento do clipe, deu as costas para Pabllo, literalmente. A situação embaraçosa fez com que Anitta, constrangida, cobrasse postura de Amin durante a gravação da reportagem. E a repercussão internacional também não foi “somente flores”, pelo menos não quando se trata do blogueiro Perez Hilton; o ex-amigo de diversas celebridades, conhecido por sua cordialidade (não!!), divulgou o lançamento através do Twitter sem creditar Vittar e quando questionado, confessou ter o feito consciente do boicote, o que acabou por render uma discussão direta com Diplo e a revolta de milhares de usuários da rede social.
Tanto Amin quanto Perez, são assumidamente homossexuais e coincidentemente trabalham com tabloides e se alimentam de rumores e escândalos do mundo da fama. Certamente, ambos já foram discriminados algum momento de suas vidas e por compreender na pele o que é o preconceito, esperamos empatia entre pessoas que se reconhecem pela bandeira que carregam, mas em casos como esse, tudo o que a realidade nos proporcionou foi uma demonstração de machismo e fortificação de padrões, inclusive dentro do próprio meio LGBT+. Em 1994, quando o já mencionado The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert foi lançado, a crítica classificou o longa como comédia/musical. Parecia muito audacioso um filme sobre transformistas, ter o rótulo de drama/musical, embora fosse, tudo isso porque a indústria do cinema, como várias outras, ainda é, mesmo que de forma velada, extremamente conservadorista e preconceituosa. O que aconteceu com a obra de Stephan Elliot em 1994 se repetiu com Pabllo Vittar em 2017. Pela manutenção e conservação do machismo implícito na indústria do entretenimento e publicitária, se faz necessário empregar um humor estereotipado e limitado a imagem gay, transformando-a muitas vezes numa autoparódia, com a maquiavélica intenção de tirar a seriedade da causa LGBT+.
E imagine, se uma mulher latina como Anitta é motivo de incômodo quem dirá então uma drag latina de origem humilde? Essa não é a primeira vez que o mercado fonográfico se prova um reagente social, revelando aspectos antes inertes, mas certamente é a primeira vez – ao menos no século XXI – que dois artistas brasileiros ocupam um posto tão alto em termos comerciais, e melhor ainda, esses artistas são Anitta e Pabllo Vittar que, independente de gostos e opiniões, estão ali representando muito mais que a bandeira verde e amarela de nosso país, mas uma diversidade de cores e vidas que, por suas origens e identidades, se viram outrora negadas ao direito de sonhar.
As dificuldades e barreiras ainda são muitas, mas a nova geração está aí e chegou pronta pra atacar, pra quebrar tabus, redefinir parâmetros socioculturais e já mandou o aviso pros preconceituosos: “Me encara, se prepara, que eu vou jogar bem na sua cara”.