O fim do ano chegou e as famigeradas listas de melhores discos lançados em 2020 vão aparecendo. Pensando nessas listas, algo corriqueiro que acontece são os artistas que se tornam unanimidades; eles estão presentes em quase todas as publicações desse tipo, uma amostra de como esses artistas conseguiram marcar com um determinado trabalho.
Voltando os olhos para 2020, é inevitável não lembrar de Freddie Gibbs nesse sentido. Alfredo, sua colaboração com o consagrado produtor The Alchemist, se tornou um sucesso instantâneo e pode ser considerado o álbum de Rap do ano (aliás, a obra é uma das indicações na categoria Melhor Álbum de Rap no GRAMMY). O mais recente disco de Freddie por si só é um argumento consistente para o enxergarmos como um dos melhores rappers da atualidade. Se observarmos seus mais de 15 anos de carreira, vemos que sua trajetória só fortalece essa opinião.
Desde o seu primeiro EP, Full Metal Jackit (2004), o rapper natural da cidade de Gary, em Indiana, se consolidou como um dos nomes mais criativos da cena. O número de trabalhos lançados por Freddie assusta: são 4 álbuns de estúdio, 4 álbuns colaborativos, 8 EPs e 19 mixtapes. Muito mais do que impressionar pela quantidade, a qualidade das suas obras o torna um artista especial, já que todos tiveram recepções positivas da crítica especializada. Mas afinal, quem é Freddie Gibbs? O que o motivou a fazer rap? O que faz dele um artista único dentro do cenário musical?
O começo em Gary
Para entender como a arte de Gibbs funciona, é preciso voltar até às suas origens. Freddie nasceu em Gary, Indiana – a mesma cidade em que também nasceu Michael Jackson. A família do rapper se mudou para lá ainda na década de 60; a motivação era a busca de um emprego no local que se mostrava promissor por conta do investimento na indústria de aço. Com o tempo, o sonho deu lugar à decepção com o crescimento da violência, da falta de infraestrutura e do recorrente fechamento de escolas em Gary. Para se ter uma ideia, a cidade até hoje possui uma das maiores taxas de homicídio dos EUA.
Por tudo isso, a trajetória pessoal de Freddie não foi fácil; na juventude, o rapper fugiu por um tempo do universo caótico de Gary enquanto frequentou a Universidade graças a uma bolsa de estudos por jogar Futebol Americano. Porém, ele acabou expulso pela falta de interesse nas aulas – algo que soa normal para alguém que nunca recebeu incentivo para os estudos. Foi assim que Gibbs começou a vender drogas, e viveu no mundo sombrio que permeia as suas letras.
Essas experiências fazem com que Gibbs seja considerado um verdadeiro representante do gangsta rap. Afinal, ele não apenas testemunhou, como viveu com a violência desde sempre em Gary. O mais interessante é que Freddie trata essa experiência com sensatez, de modo cru e sem glamourização; aliás, o próprio já disse que vender drogas foi a última de suas opções enquanto não trabalhou com música, e que muitos entram nessa vida pelo mesmo motivo.
Também é preciso ressaltar que crescer em Gary, na região central dos Estados Unidos, fez com que Freddie fosse influenciado por artistas da costa oeste, leste e sul, tornando o seu som ainda mais completo e original.
A trajetória como uma estrela indie
Freddie é um artista único no hip-hop não apenas pelo seu flow original ou pela capacidade em variar os estilos, mas também pela sua trajetória profissional; ela é incomum para artistas de rap que vieram da mesma geração que ele. Após uma sequência de cinco mixtapes entre 2004 e 2006 (todas lançadas em formato independente), Freddie fechou um acordo com a gigante Interscope Records. Entretanto, a gravadora mudou de ideia pouco tempo depois, algo que poderia ter tirado a motivação de Gibbs em ser músico. Entretanto, Freddie acreditou em seu próprio talento; ele continuou a produzir e lançar de forma independente todas as suas mixtapes na internet, algo que impulsionou sua popularidade. É importante citar também a participação de Ben “Lambo” Lambert, manager de Gibbs; ele ajudou a convencer o rapper a voltar para Los Angeles e continuar trabalhando com música.
Por conta da expansão de possibilidades para artistas independentes no final da década de 2000, Gibbs se tornou um dos primeiros grandes artista de hip-hop a se tornar popular graças à web. Esse reconhecimento teve como consequência a seleção de Freddie para o XXL Freshman Class em 2010; essa é uma edição especial e anual da revista XXL, que indica os nomes mais promissores do rap a cada ano. Freddie foi escolhido ao lado de nomes como J.Cole, Nipsey Hussle, Big Sean, Wiz Khalifa e Jay Rock. Com isso, ele se colocou no mapa das principais estrelas do hip-hop graças a sua carreira como artista independente.
Ele voltou a trabalhar com uma gravadora grande apenas em 2019, em Bandana. Sendo assim, fica ainda mais fácil perceber como o talento de Gibbs é algo natural, e que mesmo com um percurso diferente, ele conquistou as pessoas com seu carisma e autenticidade.
MadGibbs e a construção do mito em torno de Freddie Gibbs
Desde a publicação da XXL, a reputação de Gibbs como rapper só cresceu, fazendo com que ele conquistasse o respeito dentro da própria cena. Foi esse respeito que fez com que surgisse uma das parcerias mais bem-sucedidas da história do hip-hop com o lendário produtor Madlib, em 2011. O primeiro registro dos dois foi o EP Thuggin’; ele já combinava a capacidade de Madlib em trabalhar com instrumentais não-convencionais e samples belíssimos com a habilidade de Gibbs em rimar de modo impactante em cima de qualquer beat. Em seguida, mais dois EPs: Shame (2012) e Deeper (2013). E em 2014, eles lançaram o primeiro LP e um dos clássicos recentes do hip-hop: Piñata. Com batidas estranhas e densas, e um Freddie Gibbs que começava a se confirmar como uma das melhores vozes do hip-hop, Piñata é celebrado até hoje.
Já o segundo LP da dupla como MadGibbs foi Bandana; o disco fez com que Gibbs alcançasse as massas, trazendo a primeira indicação de Gibbs ao GRAMMY. O álbum foi inspirado em toda a trajetória de vida de Freddie e principalmente no período em que o rapper ficou preso na Áustria por uma acusação falsa de estupro. Por isso, há uma emoção e intimismo ainda maior do que em outros momentos de Gibbs. O episódio o marcou profundamente, algo que pode ser visto nessa entrevista/sessão de terapia publicada pela Noisey:
Assim como em Piñata, Bandana é rechado de recortes complexos, e a capacidade de Gibbs em rimar por cima de vários tipos de beats impressiona. Analisando a parceria dos dois, fica impossível não lembrar dos trabalhos de Madlib com o lendário rapper MFDOOM, na alcunha de Madvillain. Sendo assim, MadGibbs funciona como se Freddie tivesse ocupado o espaço de “mito” no hip-hop que pertencia à DOOM na década de 2000. Assim, a parceria fez que Gibbs alcançasse o mesmo reconhecimento que MFDOOM tem, se transformando em um dos maiores rappers dos últimos anos.
O respeito da cena do hip-hop por Freddie Gibbs
Por fim, um indicativo importante sobre o status que Gibbs conquistou como artista está no respeito que o mesmo conseguiu ao longo da sua carreira. Pense que o mesmo já realizou colaborações com dois dos principais produtores da história recente do rap – The Alchemist e Madlib. Esse respeito vai mais além e pode ser verificado na longa lista de grandes nomes que já colaboraram com Freddie.
Pegando apenas o período de 2015 pra frente, Gibbs já teve ao seu lado nomes como Danny Brown, Raekwon, Earl Sweatshirt, Gucci Mane, Pusha-T, Killer Mike, Anderson .Paak, Rick Ross e Tyler, the Creator. Além disso revelar um pouco do respeito que outros artistas de alto calibre tem por Freddie, isso atesta a versatilidade de Gibbs, que consegue se encaixar em todo tipo de batida, com todo tipo de rapper, sem perder a sua identidade musical.
Freddie Gibbs merece toda a sua atenção
A trajetória pessoal e profissional de Gibbs é complexa, cheia de histórias e detalhes. Saber um pouco sobre quem é Freddie Gibbs torna impossível não se interessar pela obra de um dos rappers mais autênticos, versáteis e criativos do hip-hop. Respondendo a questão do título desse texto, Gibbs é um artista único no rap por ter saído de uma cidade que está longe dos holofotes artístico e social estadunidense, ter crescido como um artista independente e ainda assim se tornar um dos artistas mais estabelecidos do rap. Definitivamente, ninguém é como Freddie.