Com a chegada da pandemia de Covid-19, a quarentena pegou todo mundo de jeito. Mas a gente sabe que para os artistas, em especial, a coisa foi ainda mais pesada: impedidos de fazer shows e eventos, os músicos tiveram de se reinventar e passar por uma dura crise econômica e também criativa. No entanto, sempre é possível tirar alguma lição das adversidades. É isso o que prova a banda A Olívia, de São Paulo.
Formado por Luis Vidal (voz e guitarra base), Mateus Albino (guitarra solo), Murilo Fedele (bateria) e Pedro Lauletta (teclado e percussão), o grupo lança hoje com exclusividade pelo Audiograma seu novo EP Output, acompanhado por clipe, podcast e até música feita pelo WhatsApp!
Totalmente feito de forma caseira durante a quarentena, com os integrantes colaborando à distância, Output é, segundo a própria banda, o resultado de experimentações sensoriais, sentimentais e musicais traduzidas em uma estética lo-fi e em clima de isolamento e introspecção, finalmente colocando pra fora tudo o que estava entalado na garganta e apertado no peito.
A captação de áudio de “Output” foi feita por Luis Vidal e Pedro Lauletta e a mixagem das faixas “Output” e “Globo terrestre” é de Kaneo Ramos. Em seu home studio, Carlos Bechet mixou as demais canções e também foi responsável pela masterização de todas as faixas. O compacto é um lançamento do selo Orelha Muda, que trabalha com bandas como Suco de Lúcuma e Applegate.
Com cinco faixas, um mini-podcast e um videoclipe, o trabalho chega carregado de análises sobre processo criativo e a importância do trabalho do artista, e será a primeira parte de um projeto que terá uma continuação em 2021, com o lançamento de mais material inédito. A segunda parte, não à toa, irá se chamar Input e deve ser gravada em estúdio profissional, representando a esperança da banda em um ano melhor para todos.
O quarteto paulistano foi formado em 2014, quando os integrantes ainda eram adolescentes, e se inspira em situações cotidianas para criar arte. O nome da banda homenageia uma priminha que nasceu na mesma época do projeto, Olívia, e representa a busca por clareza e simplicidade, características tão fortes nas crianças. O disco de estreia da Olívia (“Jardineiros de Concreto”, de 2017) contou com a produção de Rodrigo de Castro Lopes, ganhador do Grammy Latino, e ganhou dois videoclipes, milhares de plays no Spotify e menções em listas de Melhores do Ano.
“Uma faísca. É disso que se precisa, a cada nota indecisa. Ao menos uma faísca. Tempos difíceis para ser artista. Com todas estas facilidades. Facilimbecilidades. Just do it. But patrocine. Não existe café de graça, mas sempre há um músico tocando ao fundo. Escrito na borra, um futuro tão claro quanto a dissonância.
Tanto o clipe quanto o EP Output começam assim, com a declamação do poema “Uma faísca”, bastante melancólico e questionador, trazendo reflexões sobre o papel do artista e o seu valor. Em seguida, a canção e as imagens tentam expressar os sentimentos atrapalhados e a dificuldade de interação causados pelo isolamento social em tempos de coronavírus. As projeções mostradas no clipe são em parte trechos de shows ao vivo da banda realizados antes da pandemia. Achei muito bacana também os trechos do vídeo que mostram projeções de imagens em prédios.
Sentimental e introspectiva, a canção retrata o jovem que vê sua força criativa sendo reprimida, dando lugar à insegurança e à solidão. O clipe foi dirigido e editado inteiramente a distância, via vídeo chamada, pelo diretor visual Diogo Pacífico. Considerado como o “quinto Beatle” da Olívia, Diogo também é responsável pela identidade visual da banda.
“Eu tô completamente off, sozinho, tocando no meu quarto”
E, além do EP e do clipe, A Olívia traz uma novidade bem bacana em seu novo trabalho: uma edição especial do podcast “O Q da Música”, que já era feito pela banda, aparece como uma faixa bônus. Na gravação, os integrantes comentam sobre o lançamento de forma bem-humorada, contando todo o seu processo de criação e como conseguiram se virar nessa forma obrigatoriamente diferente de trabalhar. Eles também aprofundam essa discussão em uma entrevista exclusiva para o Audiograma:
O primeiro trabalho de vocês foi produzido por um cara que ganhou o Grammy e, agora, o novo trabalho teve de ser feito em casa durante a quarentena. Como foi esse choque entre uma gravação e outra?
Mateus – Gravar em casa tem um outro clima. Quando você está em estúdio, existe uma certa objetividade ali, você está usando o espaço do estúdio, o técnico de som está lá, existe toda uma dinâmica para aquilo acontecer daquela forma. Você já tem tudo que vai gravar na cabeça e na ponta dos dedos. Por mais que muita mágica possa acontecer dentro de um estúdio, geralmente somos mais objetivos lá. Agora, gravando em casa, pudemos imaginar e criar muito mais. A gente já tinha a maioria das coisas planejadas, mas, como estávamos no home studio, podíamos experimentar tudo sem a preocupação de gastar tempo. Podíamos errar, inventar e ser mais livres nesse processo de gravação. Antes da pandemia já estávamos trabalhando mais em casa, mesmo para ensaiar, e o clima de trabalhar no home studio parece que ajuda a nossa subjetividade a fluir melhor.
Como já dizia Nina Simone, é dever do artista refletir o tempo em que vive. Isso é perfeitamente aplicável ao novo EP de vocês, que registra bem como é viver esses tempos de pandemia sendo músico, tendo corte de emprego e salário, ficando preso em casa, ansioso e angustiado. De onde mais veio a inspiração para essas composições? Vocês sentiram que foi um desabafo de tudo o que vêm passando esse ano?
Luis – A inspiração de “Output” veio numa volta do trabalho, num dia “daqueles”. Eu estava esgotado, tinha levado um tempão pra chegar em casa, já estava há dias sem tocar, aí peguei a guitarra e fui brincando. Eu penso que o nosso inconsciente está sempre alerta. A gente absorve muito mais do que nos damos conta. Aí vai acumulando. Crise política, econômica, mundial, nacional, eleições, polarização, terraplanistas, relacionamentos, superficialidade bombando, Covid-19. Acaba sendo um desabafo, porque chega um momento em que todo mundo precisa desabafar. Mas eu me considero um otimista. Acho que a diferença entre o pessimista e o romântico é o último capítulo. “Globo terrestre”, “SOS Internet” e “Olívia is a Punk” foram compostas esse ano, então com certeza estão muito influenciadas por sentimentos introspectivos de angústia, medo, ansiedade…mas elas também falam de amor, conexões verdadeiras e possibilidades. O que acho mais curioso é que a música “Output” eu fiz no final de 2017, mas parece que ela caiu como uma luva em 2020. Ao mesmo tempo, às vezes parece que ela está totalmente fora de contexto, tipo, eu quero SAIR de casa, e não CHEGAR em casa como a letra fala. Mas eu me pergunto se, quando finalmente a gente conseguir voltar ao “antigo” normal, por quanto tempo eu vou ter esse sentimento de querer SAIR mais vezes? E o que vou fazer do meu tempo quando eu sair ou ficar em casa?
Em 2021 teremos a segunda parte deste trabalho. Achei muito interessante vocês terem planejado a obra dessa forma. O que podemos esperar, o que vem por aí? Será que ano que vem vai ser melhor mesmo (kkkkrying)?
Murilo – O contexto que estamos vivendo fez a gente chegar nesse conceito cheio de dualidades. Acho que, por um lado, de repente a gente ganhou muito tempo consigo mesmo, e, por outro, perdemos muito quanto à interação com o mundo lá fora. É inevitável não pensar em quando tudo vai “voltar ao normal” — e em como esses dois universos colidem quando isso acontece. O “Output” é um trabalho pensado para ser introspectivo. O Luís trouxe letras muito pessoais e, às vezes, até viscerais por causa do jeito quase narrativo delas. Sonoramente, a gente se viu obrigado a repensar arranjos dentro da realidade de casa. E, por a gente ter ido para esse lado mais interno, sentimos a necessidade de imaginar o lado de fora. Acho que pensar em um lançamento em duas partes é um jeito de nos mantermos conectados com o que acontece ao nosso redor e também de nos mantermos motivados pensando que sim, as coisas vão melhorar. O “Input”, o EP que vai complementar o “Output”, está sendo pensado sob essa ótica, desde a natureza das letras até o processo de composição, no qual pretendemos voltar ao estúdio.
Em “Olívia is a Punk” a música começa e termina com o som de gravação de áudio do WhatsApp, que já nos é tão familiar. E, como uma boa faixa punk, é bem curtinha (tem pouco mais de um minuto). Isso tudo certamente foi proposital, mas queria saber por que fizeram, o que significa.
Pedro – A resposta é bem simples: foi porque essa música foi composta via Whatsapp, no grupo da banda. Eu sempre digo que o Luis consegue compor sobre qualquer coisa, mas dessa vez ele se superou! Um dia, acho que lá pra maio ou junho, ele mandou: “vamos compor uma música? Mandem como vocês estão se sentindo aí”, e cada um mandou uma frase, que são basicamente os primeiros versos da música. Pouco depois (coisa de uns 30 minutos), o Luis mandou uma letra inteira! O Mateus pensou na harmonia, o Luis gravou a guitarra e na hora eu quis completar com o baixo e a bateria, que gravei logo em seguida. Tudo isso trocando mensagens e áudios no Whatsapp. No mesmo dia ela já estava pronta! Quando decidimos incluir a música no EP e editamos a faixa, eu sugeri colocar o barulho do Whatsapp como um “easter egg” do processo, e os meninos gostaram da ideia.
Também amo o refrão de “Olívia is a Punk”, em que vocês fazem um jogo de palavras: “eu vou cantar até alguém me ouvir, eu vou tocar até alguém me ouvir, game over”. É simplesmente genial. Podem comentar sobre ele e sobre a letra dessa canção? Quais foram as inspirações e referências dessa composição?
Luis – O refrão é inspirado nessa coisa de que tentativa não tem erro. Você quase se acaba de tanto tentar, mas segue tentando com força, custe o que custar, e é isso aí, o lance é a jornada. Como numa fase de videogame, muitas vezes você descobre o caminho falhando. É claro que a vida não é um jogo, mas até por isso acho que a frase combina tão bem num punk rock. É essa coisa de fazer a sua realidade ser ouvida, aumentar o volume, botar seus sentimentos pra fora no nível hard. Chega um momento em que você está tão perto da explosão que você tem que explodir, ou então você vai implodir, e aí o estrago é bem maior.
Pedro – Como o nome da música já entrega, é uma referência direta aos Ramones. É uma banda que nós ouvimos muito, porém ainda não tínhamos feito nada nesse estilo, um punk cru e direto. Unimos o útil ao agradável!
No podcast vocês comentam que foi muito difícil fazer um clipe à distância por conta da quarentena. Quais foram exatamente os desafios? E como conseguiram finalizar o trabalho?
Diogo (diretor do clipe) – Começa que a gente teve que bolar uma forma de eu, da minha casa, conseguir ver a tela da câmera, que estava na casa do Luis, de uma forma decente. Porque, se você olhar as imagens dos primeiros testes, o Luis tava filmando a câmera através da webcam do notebook, super ideia errada, mal dava pra ver o que tava sendo capturado. Fizemos alguns testes e decidimos ligar a câmera por um cabo no computador, e, no Skype, o Luis compartilharia a tela, aí eu teria um controle total das configurações da câmera e uma visualização bem mais razoável. Esse deve ter sido o menor dos desafios, porque logo depois começaram as filmagens de fato, haha.
O problema é que, vendo só a imagem da câmera, você não consegue dimensionar o ambiente que está sendo filmado. Era um trabalho de tentar imaginar um ambiente tridimensional através de uma imagem bidimensional, e acontece que eu e o Mateus, que ajudou na produção e na filmagem, não conseguíamos entender qual era o grande problema em puxar um pouco mais a câmera pra cá ou pra lá, enquanto o Luis estava no set, se desorganizando e querendo me matar no meio de cabos curtos, extensões, tripés e espaços apertados.
A real é que dava muita vontade de estar lá fisicamente, pegar a câmera na mão e apontar pra onde queria. Com a distância, era um processo muito mais lento, de tentar comunicar da melhor forma o que eu estava imaginando para cada cena — e muitas vezes o que eu imaginava nem era possível, de novo, por conta desse problema de não estar lá, de não entender a disposição de todas as coisas envolvidas. Mas no fim a gente ficou bem satisfeito com o trampo, valeu a pena esse esforço todo.
Quando acabava a filmagem, o Luis subia os arquivos num Dropbox. No dia seguinte, eu baixava no meu computador e já montava as cenas que tinham sido filmadas. Tudo de efeito especial e 3D eu fiz aqui em casa mesmo, sem grandes tretas. Depois de chegar ao corte final, enviei todos os arquivos para a nossa finalizadora, a Luisa, que fez a correção de cor e finalização. Aí, em alguns dias, já tínhamos nosso clipe lindão!
Por mais que a gente esteja confinado e se sentindo preso, o quarto também pode ser um refúgio, né? Foi isso o que senti ouvindo “Output”, prestando atenção na letra e no clipe dessa música.
Luis – Total. E num refúgio você poder ser você mesmo 100% do tempo, né? É um momento de introspecção e autoconhecimento. Estar sozinho num ambiente só seu, sem julgamentos externos. Soa contraditório, mas é libertador. Talvez seja um dos motivos de nos sentirmos tão sozinhos mesmo estando mais conectados do que nunca. Achei legal você falar em refúgio, porque é um lugar que a pessoa se sente acolhida, e acho que “Output” acolhe o artista que existe em cada um de nós. Esse ser criativo, que precisa dedicar um tempo a si mesmo. E aí sim expandir, explorar, o céu é o limite. Acredito no poder da arte para comunicar sensibilizando. É mais do que conscientizar. Porque, com a sensibilidade, o questionamento fica mais refinado, apurado e amoroso.
Por que vocês escolheram essa faixa pra ser o destaque do lançamento, com clipe e tudo?
Murilo – “Output” é uma música que traduz o nosso sentimento geral no meio da pandemia. É uma narrativa que fala sobre a tentativa de se conectar, de falar com o mundo lá fora. Gravar em casa é quase uma metalinguagem da música em si mesma, mas ultimamente ela constrói um conceito que é baseado na necessidade de expressão. Por isso ela ganhou tanta importância no lançamento. O conceito do EP é baseado nessa tentativa de reconexão, seja de um jeito mais literal, com “SOS Internet”, ou de um ponto de vista mais pessoal e emocional com “Globo Terrestre”. “Output” é uma das faixas que mais mexe com a gente porque ela é a narrativa do músico em tempos de isolamento, mesmo tendo sido feita antes de tudo isso. Foi muito natural traçar o conceito da obra ao redor dela, é uma música que fala da nossa realidade e de uma necessidade que talvez nunca tenha sido tão latente quanto agora, que é a de ouvir e ser ouvido.
E sobre o clipe, além das agruras da quarentena, o que mais vocês quiseram passar de mensagem e estética com ele? E como conseguiram fazer as projeções nos prédios? Achei super legal!
Diogo – O processo de escrever e imaginar o clipe foi muito longo. Começou, na verdade, bem antes de qualquer notícia de pandemia. Quando finalmente terminei o roteiro, veio a quarentena. Aí o projeto ficou suspenso até que eu vi uma foto que meio que bombou na internet. Era um casal jantando, um de frente para o outro, mas a moça era uma projeção. De repente me deu um estalo de que a gente conseguia sim fazer o clipe à distância, e que podia ficar bonito. O roteiro tomou outro significado nesse contexto — porque, se antes era um clipe sobre um cara que tava de saco cheio do mundo externo e só queria poder ficar sozinho tocando sua guitarra, agora essa motivação era outra. O clipe passou a ser sobre as dificuldades de sermos ouvidos, sobre você querer se expressar e não ter sucesso. É o cara que cansou de tentar se comunicar e precisou escancarar com tudo, tocar sua música nos prédios pra ver se arranca alguma resposta do público. Projetar as cenas nos prédios foi uma etapa bem divertida! O Luis tinha comprado um projetor há algum tempo, que a gente já tinha usado nos lançamentos dos clipes de “Não Me Leve A Mal” e de “Passar em Branco”, então resolvemos usar em “Output” também. Aí o projetor fez um mini-tour pela cidade, passando por 3 integrantes da banda. Também pedi ajuda de uma amiga minha, que eu sabia que também tinha um projetorzinho, para captar umas imagens ao redor da casa dela. E o resto é história.
Por que decidiram fazer um mini podcast para acompanhar o EP?
Luis – Eu já fazia podcasts sobre música independente desde 2015, com a “Rádio Minhoca”. Por conta da pandemia, dei um pause no projeto e foi aí que veio a ideia de focar nos conteúdos de podcast para A Olívia. Falei com a banda e criamos o podcast semanal (às vezes quinzenal) “O ‘Q’ da Música”, disponível na Anchor e no Spotify, onde a gente troca uma ideia sobre processo criativo e arte e também trazemos convidados de fora da banda para contar as suas experiências pessoais. Foi a forma que encontramos de manter contato com os nossos amigos, estar mais perto do nosso público e lidar com as adversidades juntos. Então pensamos num episódio especial do podcast, uma versão mini e mais musical, para colocar no EP. É um resumo das nossas conversas, um convite pra galera que quiser ouvir os outros podcasts e meio que uma mensagem final otimista, com spoilers!