Uma das grandes marcas do hip hop é o modo como ele permite que as pessoas se expressem de forma livre e original. Até por isso, com o decorrer dos anos, o rap sempre apresentou novos e diversos estilos – é só pensar em como o que é popular em relação ao gênero já mudou. Paralelamente, em um estilo que oferece tanta criatividade, houve também momentos em que tudo que surgia e era intitulado como rap no mainstream acabava por soar igual – e que geralmente era guiado pelo que estava dominando a cena naquele momento. Por esse motivo também, muitos dos discos que são considerados clássicos do rap são aqueles que também são inovadores, e que fogem dessa “caixinha” moldada por um período em questão. É o caso de Stankonia, quarto LP do OutKast.
O álbum foi lançado em 2000, em mais um desses momentos em que o hip hop comercial parecia soar idêntico entre um e outro artista; no caso dessa época, o estilo que mais predominava era o gangsta rap. O som que havia sido popularizado por nomes como Tupac Shakur, The Notorious B.I.G. e N.W.A. já se afastava da discussão de temáticas sociais, caminhando para o que viria a se tornar o bling bling – subgênero em que o foco das letras está nos conflitos pessoais, mulheres e dinheiro. Já o OutKast era diferente: o duo formado por Andre Benjamin (a.k.a. André 3000) e Antwan Patton (Big Boi) marcou os anos 90 com muita originalidade e discos completamente singulares/experimentais, caso de Stankonia.
O álbum completa 20 anos desde o seu lançamento em 31 de outubro, e por isso, vim falar sobre como e por quais motivos ele se tornou um marco da música, soando desde sempre atual e original, além de pavimentar o OutKast como o maior grupo de hip-hop de todos os tempos.
Como o OutKast sempre se mostrou diferente
Muito antes de Stankonia, o OutKast sempre pareceu ser diferente. Contextualizando, o duo lançou seu LP de estreia em 1994: Southernplayalisticadillacmuzik. Nessa época, a guerra entre rappers da costa oeste e leste dos EUA estava mais acesa do que nunca, e a dupla, que é natural de Atlanta (cidade localizada no sul) surgiu quebrando esse paradigma estabelecido até então. O álbum representa um manifesto e também a popularização da cena southern, já que André e Big Boi foram os primeiros artistas da região a ter algum reconhecimento no mesmo nível dos artistas da east/west coast. Sendo assim, por questões geográficas, o OutKast já diferia de tudo que fazia sucesso. Além disso, o duo sempre deixou bem claro querer estar distante do conflito que marcava as faixas de rap na época, querendo apenas ser um porta-voz da realidade no sul.
Um episódio marcante nesse sentido ocorreu na entrega do Source Awards de 1995, premiação na qual o OutKast acabou vencendo como Grupo Revelação de Rap. Na ocasião, ao ser anunciado, o duo foi vaiado por uma plateia preenchida por diversos artistas da costa leste e oeste. Ao discursar, um ainda tímido e jovem André exclamou:
“Eu estou cansado de caras de mente fechada. É como se tivéssemos uma fita demo que ninguém quer ouvir. Mas é isso: o Sul tem algo a dizer!”
O grupo imediatamente conquistou o respeito merecido, e mais do que isso, provaria em seus próximos trabalhos, ATLiens (1996), Aquemini (1998) e finalmente Stankonia, que o rap naquele período poderia ser diferente.
Um álbum de rap não influenciado pelo rap
A primeira coisa que se nota escutando Stankonia é como a sua sonoridade é incomum ao que encontramos no rap nesse mesmo período. Há canções com fortes influências do rock, do soul e do funk, em um disco que não explora muito a técnica de instrumentos sampleados, por exemplo. Essa estética sonora se deve especialmente ao fato do que escutou o OutKast no período em que Stankonia foi produzido; Chuck Berry, Prince e Little Richard são apenas alguns dos artistas que serviram como referência.
Por outro lado, não há tanta influência do rap, e muito menos do que tocava no final dos anos 90. Aliás, em uma entrevista para a XXL em dezembro de 2000, André comentou sobre o que achava da cena do hip-hop durante a virada do milênio:
“Eu poderia colocar um disco mais antigo e realmente sentir essa m****. Eu poderia colocar um disco de hip-hop atual que é legal, é bom nas boates, mas eu simplesmente não consigo senti-lo. Não é que é chato – ele não é inspirador.”
Já Big Boi via a necessidade do rap daquela época ser diferente – não que ele fosse necessariamente ruim. Assim, fica claro quais eram as intenções do duo com Stankonia: inovar.
A faixa de abertura do álbum (sem ser o interlúdio “Intro”) é um ótimo exemplo; “Gasoline Dreams” é como se Jimi Hendrix ainda estivesse vivo, com riffs poderosos de guitarra acompanhando a química perfeita de Big Boi e Andre 3000. Já o single “B.O.B. – Bombs Over Baghdah” mistura funk e gospel, com o coro viciante e enérgico do seu refrão. Não à toa, ela é considerada uma das melhores músicas dos anos 2000. Também não precisa de muito para compreender como ambas se diferenciam de tudo que o hip-hop (e a indústria no geral) tinham como norma no início do século 21.
O desmascaramento do sonho americano
Se o rap caminhava em direção a um horizonte que vangloriava bens materiais e o capitalismo, Stankonia é uma bela resposta que vai de encontro com a verdadeira realidade do “american way of life”, sendo outro ponto no qual o disco se difere de qualquer outra obra do período. Ainda sobre “Gasoline Dreams”, ao invés de luxo, temos os versos que denunciam a falência da sociedade contemporânea em todos os sentidos:
“Todo mundo não gosta do cheiro de gasolina?
Então queime, queime sonhos americanos
Todo mundo não gosta do sabor da torta de maçã?
Nós vamos agarrar sua fatia de vida, estou te dizendo por quê
Ouvi dizer que a Mãe Natureza agora está no controle da natalidade
O cafetão mais frio está procurando alguém pra abraçar
A rodovia para o paraíso teve um pedágio
A juventude cheia de fogo não tem pra onde ir, pra onde ir”
“Red Velvet” toca em pessoas que buscam aprovação através de bens materiais, algo tão difundido e valorizado; “Humble Mumble”, com colaboração de Erykah Badu, fala sobre nascer em condições precárias e superar esses problemas, citando também como o estado (ilustrado na faixa tanto como democrata quanto como republicano) não se importa com essa parcela da população. “Spaghetti Junction” também é uma das mais interessantes, já que coloca homens negros – desde os pimps até aqueles de vida comum – como alvos de um mesmo problema: o racismo e a violência contra a comunidade afro-americana. “Tenha cuidado por onde anda, porque você pode não chegar em casa”, diz Sleepy Brown em outra participação icônica de Stankonia. O álbum acerta em cheio em não esconder problemas atuais que cercam não apenas os Estados Unidos, mas o ocidente.
O culto à mulher em Stankonia
O período entre os anos 90 e 2000 foi também o que consolidou um dos estereótipos mais famosos e negativos do rap, estereótipo esse ligado ao machismo. Ainda que o rap ser um estilo machista não seja uma verdade absoluta, é fato que algumas das canções mais famosas da época tinham letras problemáticas; nesse sentido, Stankonia também se distingue, já que há diversas canções no disco em que as mulheres são protagonistas.
Pensando nisso, é inevitável pensar no maior hit de Stankonia (e talvez da carreira do OutKast), “Ms. Jackson”. Muito mais do que ter um dos versos mais famosos da história do hip-hop (“On the oak tree, i hope we feel like this forever/Forever, forever ever? Forever Ever?”) e ainda que a narrativa seja de um ponto de vista masculino, a canção aborda a questão de mulheres que se relacionam e tem filhos com homens que posteriormente as abandonam, e é como um pedido de desculpas destes homens às mães dessas mulheres. A faixa tem um forte teor pessoal; André se inspirou no fim do seu relacionamento com Erykah Badu, uma vez que Erykah e André haviam terminado o seu relacionamento em 1999, pouco tempo depois da mesma dar a luz ao filho do rapper.
Além do single, outra canção emocionante e que tem uma mulher como protagonista é “Toilet Tisha”; a faixa reflete sobre o tópico da gravidez na adolescência – e ganha ainda mais relevância se pensarmos que no começo dos anos 2000 havia um índice altíssimo de gravidez na adolescência nos Estados Unidos.
Há espaço também para canções mais leves: a bem-humorada “I’ll Call B4 I Cum” tem como tema a importância das mulheres se satisfazerem sexualmente, e de como homens deveriam se importar com isso. Para a música, o duo colaborou com Gangsta Boo e Eco, duas das principais rappers mulheres do hip-hop na época.
A ironia e humor agindo juntos
Há um último elemento ainda não explorado nesse texto e que faz de Stankonia um álbum à frente e diferente do seu tempo: o humor e ironia aplicado em vários momentos, e que tem como alvo a própria cena do rap. O disco traz um ambiente leve (apesar de tocar em assuntos sérios durante algumas faixas), sem provocações ou diss tracks, mas que não deixa de criticar a situação da música até então. “So Fresh, So Clean”, outro single, cria um clima harmonioso e relaxante, algo que se difere do universo pesado e intenso que cercava o hip-hop em meio a rivalidade da costa leste e oeste.
Em relação a ironia, ela habita em canções como “We Luv Deez Hoez”; em um primeiro momento , ela pode soar como mais uma daquelas que parecem um ataque à mulheres, mas na verdade critica os rappers que criaram o estereótipo das “hoes” (algo que pode ser traduzido como “vadias”). “Gangsta S**t” é outra que faz referência a alguns artistas da época, que agiam como supostos gângsteres.
Além disso, o disco é recheado de interlúdios que mais parecem diálogos de sitcoms, que geram um clima descontraído.
Um planeta onde a única norma é ser você mesmo
Stankonia é um nome perfeito para o quarto álbum do OutKast; afinal, o título lembra o nome de um planeta. Nesse planeta, a única ordem é se divertir e se expressar livremente. Ao construir um mundo só para si no universo do rap, o OutKast permitiu que se normalizasse com mais frequência as inovações no gênero. Com isso, é possível dizer que sem Stankonia, seria muito difícil enxergar artistas como Kanye West e Tyler, the Creator ganhando espaço dentro da cena.
Por fim, Stankonia comprova Big Boi como um dos maiores MCs de todos os tempos, e André 3000 como um dos melhores compositores. Na realidade, André 3000 e Big Boi estão além disso: eles ofereceram com o disco um novo suspiro e ressignificaram o rap. Stankonia é a confirmação de que ser você mesmo é muito mais interessante do que se encaixar em um padrão estabelecido. Se expressar livremente é uma arte.
“Bem-vindo a Stankonia, o lugar onde tudo que é divertido aparece”.