Pense em quantas bandas que você conhece que, por metade do ano, fazem turnês e shows pelo mundo promovendo seus discos e, na outra metade, comandam uma fazenda orgânica no interior da França.
Provavelmente nenhuma, certo?
Então é hora de conhecer The Inspector Cluzo!
Na estrada há doze anos, a banda francesa, adepta do Do It Yourself, é formada por Laurent Lacrouts e Mathieu Jourdain e já lançou sete álbuns, se apresentando em mais de 65 países. No tempo livre, são fazendeiros e cuidam de uma fazenda em Gascogne, no sudoeste da França, onde promovem a agricultura orgânica, um sistema sustentável de plantações sem o uso de produtos químicos prejudiciais para o ser humano e o meio ambiente.
Conversei com eles sobre o novo projeto musical, que se iniciou com o lançamento de um cover do Neil Young, o trabalho na fazenda, o agronegócio e tentei entender por que eles não gostam de baixistas.
Em maio, vocês lançaram um cover de “Hey Hey My My” do Neil Young como parte de um novo projeto, que tem como proposta lançar um novo single a cada estação do ano. Como essa ideia surgiu?
Sim, nós lançamos como o primeiro capítulo do “The Organic Farmers Season”. A ideia surgiu enquanto estávamos trabalhando na fazenda durante as estações. Achamos que seria legal seguí-las nas músicas também para que as pessoas pudessem ver nosso dia a dia.
Vocês trabalharam com Vance Powell nessa música. Como foi?
Trabalhamos com Vance Powell há três álbuns agora, e ele se tornou um amigo nosso. É tão natural trabalhar com ele. Ele diz “Estou aqui para tirar a melhor versão de vocês mesmos”, o que é ótimo. Além disso, para nós, ele é o melhor engenheiro de gravação analógica de rock’n’roll do mundo.
Podemos ter um spoiler da próxima música que será lançada?
Bom, o próximo lançamento, no outono de 2020 [primavera no Brasil], será o show ao vivo que gravamos no último Unplugged February Tour, com nossos amigos no violoncelo, violino e piano.
O primeiro single [do projeto The Organic Farmers Season] foi lançado em 17 de julho, e o segundo foi lançado em 04 de setembro. O lançamento completo está planejado para 16 de outubro.
E teremos o lançamento de outra música no começo de 2021.
Uma das coisas mais interessantes sobre o The Inspector Cluzo é que vocês não são apenas uma banda: vocês são fazendeiros também. O sonho era ter uma fazenda ou ter uma banda? Qual veio primeiro?
O sonho era tocar em uma banda e viajar para conhecer diferentes culturas e pessoas, o que nós fizemos nos últimos anos fazendo mais de mil shows em 65 países. Gerenciar uma fazenda se tornou algo óbvio a se fazer quando, viajando ao redor do mundo, nós vimos qual foi o impacto da globalização econômica. Nossa resposta para isso foi fazer mais do que uma horta ou criar as galinhas e patos que já estávamos criando: nós pensamos em ser auto suficientes para minimizar nosso impacto no planeta. Percebemos que era mais do que ser auto suficientes. Era trazer uma conexão social entre as pessoas que estavam trabalhando e ajudando na fazenda. Agora, nós temos o projeto de ir além e criar algo como uma “escola de fazendeiro”, aberto para pessoas que gostariam de aprender sobre agricultura.
Nossa fazenda está localizada na região de Les Landes, em Gascogne, e é chamada de “Lou Casse”, o que em gascão significa “O Carvalho”, pois existem muitos carvalhos centenários na entrada. Nós temos, agora, dez hectares de plantação de milho, cinco hectares de trigo, todos orgânicos, plantados com nossas próprias sementes, dois hectares de prados para gansos e um hectare de horta orgânica. Vendemos nosso produtos para um mercado local todo sábado em Mort de Marsan, nossa cidade natal, e quando estamos em turnê, temos voluntários que cuidam disso para nós.
Vocês são seus próprios empresários, comandam sua própria gravadora e marcam seus próprios shows. Como é comandar tudo que envolve sua carreira musical enquanto tomam conta de uma fazenda?
Nós fazemos basicamente tudo sozinhos. É um monte de trabalho, então nós estamos trabalhando duro o tempo todo. Não temos algum tempo especifico para férias, mas consideramos que estamos sempre em férias pois fazemos o que amamos. Temos nossos escritórios na fazenda, então podemos cuidar da nossa gravadora e da nossa fazenda ao mesmo tempo.
Ser tão independente é algo que faz com que vocês se sintam mais livres como artistas?
Cuidar de tudo sozinhos nos dá mais liberdade para criar, lançar as músicas que queremos como queremos, mas estamos limitados ao nosso orçamento, então nós temos que ter mais ideias para espalhar nosso trabalho em meio ao mundo muito agitado da música. Não temos um plano de carreira, só tentamos seguir as pessoas que conhecemos. Nossa independência e criatividade são o maior vínculo em nossa carreira. Vamos para onde estamos indo.
Imagine que um dia uma banda como nós estaria agendada para o palco principal do Lollapalooza no Brasil e no Chile. Onze anos atrás, nós nunca pensamos que seria possível… Essa banda é assim, escalando paredes, nadando em um oceano de negócios sozinha (risos).
O último disco que vocês lançaram, Brothers in Ideals – We The People of Soil, é uma versão acústica do We The People of Soil, disco lançado em 2018. Como foi o processo de gravação?
A ideia surgiu no inverno de 2019, quando estávamos em turnê abrindo para o Clutch no centro oeste dos Estados Unidos. Os espaços abertos, o gelo, a neve e a terra nos deram a ideia de gravar alguma coisa no fim da turnê. Nós acabamos no estúdio do Vance em Nashville e ele disse “Vocês devem ter algo a dizer depois dessa turnê. Vamos lá”.
Essas músicas [do disco We The People of Soil] foram escritas com uma guitarra acústica, então só tocamos elas de maneira acústica e convidamos alguns amigos de Nashville para tocar violoncelo, violino, piano e órgão.
O show que vocês fizeram no Lollapalooza ano passado foi maravilhoso! Eu saí de lá achando que foi um dos melhores shows que eu já vi. Foi tão enérgico e hipnótico Como vocês estão lidando com o fato de que, durante a pandemia, todos os shows foram cancelados ou adiados? Sentem falta de estar no palco?
Obrigada por isso. Nós tentamos colocar muita energia em nossos shows e torná-los únicos para compartilhá-los com os diferentes públicos que vem nos assistir. Acho que o fato de que a música que tocamos é orgânica e ao vivo, sem computadores, melhora esse sentimento de energia. Em Gascogne, a arte da improvisação, de se adaptar para enfrentar o perigo, a arte de criar algo imediatamente é chamada de “vista” e é muito usada no mundo do rugby. Nós nos influenciamos muito por isso devido à nossa cultura gasconha, então nosso show pode parecer de improviso e espontâneo por que usamos muito o vista.
Nossa sorte nessa pandemia é que, além de festivais de verão, não tínhamos shows depois de março, e tínhamos muito trabalho em nossa fazenda então não sentimos muito o impacto de quando os shows foram cancelados. Todo nosso verão foi adiado para o próximo ano e esperamos poder viajar e compartilhar nossa energia ao vivo com as pessoas de novo.
Sentimos falta de tocar ao vivo mas as coisas são como são. É como na fazenda: às vezes, falta água para suas plantações ou uma raposa acaba comendo seus gansos.
Lembro que, durante o show, vocês disseram que na banda baixistas são tão inúteis quanto o presidente da França. Vocês também criticaram o agronegócio. Isso me fez pensar que no Brasil, não temos muitos artistas que se posicionam dessa maneira, já que por aqui esse tipo de discurso é visto como um posicionamento político e muitos tem medo de demonstrar isso e sofrer retaliações. Na França, as pessoas tem esse mesmo pensamento? Qual a importância de expressar suas opiniões políticas no seu trabalho?
Quando o rock não tem nada para dizer, definitivamente não é rock. É isso. O rock precisa de significado, em francês “du sens”. Neil Young conseguiu isso, Springsteen conseguiu isso, Pearl Jam conseguiu isso, assim como muitos artistas pelo mundo. É por isso que tocamos pessoas: “le sens”. Pode ser com politica, ou ecologia, ou poesia, ou amor, mas você precisa se expor para conseguir dar algo pessoal para sua audiência. Algo de verdade. Não se pode chamar essa música de rock se não é algo sobre isso.
Nós só falamos no palco o que estamos fazendo todos os dias. E nosso trabalho como roqueiros não é ir pro Brasil só para tocar e fazer uma viagem legal, mas ter a coragem para dizer esse tipo de coisa em cima do palco. Isso é parte da música que fazemos.
A maioria das bandas hoje em dia não pode dizer coisas como cidadãos que são porque querem agradar todo mundo já que eles tem algo a vender. Os fãs são os clientes deles. Nós não dizemos que “temos fãs” e eles não são nossos clientes. Não estamos aqui para agradar todo mundo. Se estivéssemos, faríamos outro tipo de música (risos). Eles são pessoas que amam nossa música, e agradecemos à eles, mas é só.
E, sim, às vezes nos metemos em problemas para dizer coisas assim na França também. Muitos problemas. Nossa fazenda está sob pressão do agronegócio, como toda fazenda na França. Também temos problemas com política, então, sim, você precisa ser corajoso para dizer esse tipo de coisa no palco, porque depois disso você vai ter que enfrentar muita merda. É parte do acordo.
Mas vamos continuar, porque fazemos rock e porque há uma mudança climática acontecendo, e tudo o que temos que fazer é enfrentar isso. Vamos fazer isso pelos jovens.
Uma última pergunta: fuckthebassplayer (Foda-se o baixista, em livre tradução) é o nome da sua gravadora. Por que? O que baixistas fizeram para vocês?
“Fuck the Bass Player” é o nome do nosso primeiro hit. Veio de uma piada e de nossa experiência com nossos ex baixistas. Temos uma brincadeira de dar uma camiseta escrito “Fuck the Bass Player” para baixistas famosos. Já fizemos isso com o Flea, do Red Hot Chili Peppers, Christopher Wolstenholme, do Muse, Lemmy [Kilmister], do Motorhëad, Norwood Fisher, do Fishbone, e com o Dan [Maines], do Clutch.