Algum tempo atrás, vi em algum site uma matéria que questionava se Kurt Cobain era o “músico mais superestimado do rock”.
Sendo uma fã-meio-que-obcecada pelo Nirvana, comecei a ler a dita matéria. Enquanto passava pelas diversas opiniões dos críticos e artistas consultados, que no fim não chegaram à nenhuma conclusão em especial para responder ao questionamento, via as imagens que foram escolhidas para ilustrar o texto e me peguei encarando uma foto do vocalista do Nirvana com Courtney Love, líder do Hole e, na época, esposa de Kurt, e fui atingida por uma dúvida: seria Courtney Love a musicista mais subestimada da história do rock?
“I feel so alone and I wish I could die”
Influenciado lírica e sonoramente pelo punk rock dos anos 70 e pelo heavy metal popularizado pelo Led Zeppelin e pelo Black Sabbath, o grunge foi um movimento cultural breve, mas barulhento e impactante.
As bandas exageravam no uso de pedais de distorção em suas guitarras para conseguir um som “sujo” em seus álbuns e de letras abordando problemas psicológicos, solidão, problemas sociais, entre outras temáticas populares para a época, escritas com uma linguagem acessível, tornando fácil a identificação com o eu lírico. Kurt Cobain foi escolhido como herói dos anos 90 e “Smells Like Teen Spirit”, com sua letra sobre a apatia da geração e seu refrão contagiante gritado pela voz rasgada de Cobain, se tornou o hino do movimento. A cena, assim como todos os movimentos e eras do rock anteriores, era dominada por homens que, desta vez, gritavam suas angústias para multidões.
E todos sabem o que acontece quando uma mulher decide fazer parte de um movimento dominado por homens, ainda mais quando agora ela tem a chance de, literalmente, gritar sua narrativa para o mundo: ela é chamada de histérica.
Apesar de muitas bandas formadas e lideradas por mulheres surgirem durante o meio dos anos 80 e o início dos anos 90, elas sempre eram colocadas no limbo entre o movimento riot grrrl, uma vertente feminista do punk que tem como um de seus maiores representantes nos Estados Unidos o Bikini Kill, e o gênero grunge. L7, Babes in Toyland, Dickless e The Gits são algumas das bandas que, mesmo possuindo todas as características que identificavam uma banda grunge, acabaram sendo inseridas nesse limbo.
Courtney Love quebrou esse padrão. Seu desprezo pelo punk rock, algo que foi superado posteriormente, e pelo movimento riot grrrl, que ficou registrado em suas músicas, fez com que o Hole se tornasse, se estabelecesse e se consagrasse, essencialmente, como uma banda grunge.
“There is a hole that pierces right through me”
Ao longo de seus quatro lançamentos de estúdio, o Hole transitou entre diversos ritmos que faziam sucesso entre o começo dos anos 70 e os anos 90. O pós-punk do Siouxsie and the Banshees, o rock clássico do Fleetwood Mac, o hard rock, e até mesmo o power pop estão presentes nas sonoridades dos discos, mudando e evoluindo de acordo com a necessidade da banda, que em sua formação clássica contou com Kristen Pfaff, Patty Schemel e Eric Erlandson como integrantes. As letras, por sua vez, lidavam com os temas tradicionais do grunge, incluindo, gradualmente, referências ao uso de drogas que se tornaria constante na vida de Courtney e no cenário onde ela estava inserida.
A novidade que se apresentava no Hole em relação às outras bandas são as outras temáticas inseridas por Courtney em suas composições: problemas com a aparência, assédio e abuso sexual, abuso emocional, a indústria do sexo, a maternidade, o abandono parental e a relação entre mãe e filha, na perspectiva de ambos os papéis.
Com o surgimento do Hole no cenário grunge, assuntos recorrentes na vida de milhares de mulheres ao redor do mundo passaram a ser expostos nas paradas musicais e se tornavam algo pop, ganhando visibilidade e uma narrativa, talvez pela primeira vez no contexto musical daquela época, do ponto de vista feminino.
Atuando como letrista nos quatro discos de sua banda (e em um trabalho solo considerado horrível pela própria artista, sobre o qual não falaremos aqui), é fácil entender do que se tratam as letras de Courtney, que sempre estavam em algum ponto entre a vulnerabilidade e a agressividade, sem conhecer o contexto nos quais elas estão inseridas.
Você não precisa saber sobre o episódio de assédio sexual que ela sofreu durante um stage dive num show de abertura para o Mudhoney para entender que “Asking For It” é sobre abuso sexual, ou saber da péssima relação que Courtney possuía com a imprensa e a fama para saber que “Miss World” (e basicamente todas as letras do Live Through This) e “Celebrity Skin” são reflexões sobre a exposição de sua figura pela imprensa e os julgamentos subsequentes desta imagem. E, apesar da relação com Kurt Cobain e as acusações de uso de drogas durante a gravidez da única filha do casal, Frances Bean, terem dominado as publicações jornalísticas no início dos anos 90, não é realmente necessário saber sobre estas relações familiares para compreender que “I Think That I Would Die” narra o desespero de uma mãe para não perder sua filha, ou “Honey” é sobre a morte de alguém amado e a responsabilidade que o eu lírico sente por isso.
Mas, afinal, se Courtney é uma excelente letrista, de fácil compreensão e, sobretudo, identificação, e suas músicas compreendem de maneira original estilos famosos e consagrados, por que raramente lembramos de dela pelo seu trabalho?
“I’ve made my bed, I’ll die in it”
Courtney Love tinha um comportamento público questionável, usou e abusou de drogas, teve um casamento repentino e curto, teve seu estilo copiado, começou brigas que acabaram em agressões e deu declarações irritadiças e atravessadas durante sua carreira, tudo enquanto fazia parte de uma das grandes bandas de sua época. Basicamente, ela fez tudo o que músicos e rockstars são celebrados por fazer, mas até hoje é antagonizada, pintada como uma mulher obsessiva e selvagem.
Tudo isso fez com que fosse mais divertido assistir ao desenrolar da vida pessoal de Courtney do que dar atenção ao seu trabalho. Ela foi, e é até hoje, acusada de não escrever suas próprias músicas. Seu relacionamento com Kurt foi dissecado pela mídia, se tornando assunto de opinião pública. Sua capacidade de ser mãe foi questionada dezenas de vezes. Ela foi acusada de ter planejado um suposto homicídio do próprio marido. Seu vício em drogas a transformou em objeto de investigação e em uma piada. A figura dela se fundiu às histórias sobre o Nirvana e ela sempre é pintada como a esposa obsessiva de Kurt ou como a viúva descontrolada que vive em guerra com os membros restantes da banda.
Mas é possível ver influências dela e de sua arte em artistas que vão de Tove Lo, que já citou publicamente sua inspiração no Hole, à Lana del Rey, que canta sobre a decadência de Hollywood e como a fama pode ser algo difícil de se lidar da mesma maneira que Courtney fez décadas atrás. Ela se impôs no mainstream e, com seu carisma agressivo e comportamento livre de arrependimentos, mostrou para milhões de garotas que elas podiam ser estrelas do rock.
Em um mundo onde mulheres o tempo todos são culpadas e condenadas por comportamentos fora do esperado, ela nunca pediu desculpas por agir do jeito que agia. E, para aqueles que se importam com vendas e prêmios, os discos do Hole são criticamente aclamados, indicados ao Grammy e já venderam milhões de cópias pelo mundo.
Diminuí-la à figura de esposa de Kurt Cobain, como foi feito ao longo dos anos, é injusto. É hora de admitirmos que subestimamos Courtney Love. Felizmente, ainda há tempo de consertarmos esse erro.