Uma das experiências mais incríveis e possíveis de acontecer quando você ouve uma música talvez seja descobrir aquelas que conseguem te transmitir um sentimento difícil de traduzir, ou que te causa algum tipo de catarse. É exatamente o que acontece quando se ouve Katie Gately, cantora e produtora de Los Angeles.
O seu segundo álbum de estúdio, Loom, lançado esse ano, foi bem avaliado pela crítica, e na minha opinião pode ser considerado um dos melhores trabalhos do primeiro semestre de 2020. O disco, inspirado no doloroso período em que Gately perdeu a sua mãe para um câncer em 2018, soa vivo ao ouvinte. Com instrumentais grandiosos, mas que não são pretensiosos, pelo contrário; cada elemento da estética sonora do disco parece que foi cuidadosamente pensado para transmitir milhares de sensações.
Apesar de ser uma artista que ainda está distante do mainstream, ela já colaborou com nomes como Bjork, Zola Jesus e serpentwithfeet; além disso, ela também se consolidou como designer de som para filmes antes de partir de vez para a música. Tudo isso confirma como Katie é uma artista que entrega um trabalho profundo e rico, sendo um nome interessante para se acompanhar.
E foi por isso que eu resolvi convidá-la para uma entrevista aqui no Audiograma, para contar um pouco sobre a sua transformação como artista, sua pesquisa por sons não-convencionais e seus planos para o futuro pós-pandêmico.
Olá Katie! Primeiro de tudo, parabéns pela linda e incrível experiência que você nos proporciona em Loom. Para começar, você não é necessariamente uma artista tão nova em relação ao seu tempo de carreira (seu primeiro EP é de 2013). Durante esse tempo, qual é a maior transformação que você enxergou em si mesma como artista?
KG: A maior transformação para mim foi provavelmente ficar confortável com a minha voz. Eu fui de odiá-la (e constantemente tentar encobri-la) para realmente apreciá-la. Eu tive sorte em encontrar uma professora muito acessível na Turquia no ano passado que eu falei por Skype, e ela me disse que eu precisava parar de falar que “eu tenho uma voz ruim” porque eu não tenho. Eu realmente tenho muita sorte de ter uma amplitude onde eu posso cantar muito baixo e razoavelmente alto, e acessar milhares de entonações. Agora eu canto em casa constantemente com muito mais confiança, e eu estou menos tentada em encobrir a minha voz nas gravações.
Em várias de suas entrevistas e ainda mais escutando a sua música, fica claro como você se esforça em transmitir algum tipo de sentimento ao ouvinte, mesmo que esse sentimento venha de você de uma forma bastante pessoal, ou inspirada por alguma experiência individual (como no caso de Loom). Esse sempre foi o seu foco como artista?
KG: Sim, eu sempre estou tentando capturar um sentimento e transmiti-lo adiante. Não é sempre totalmente claro para mim o que ele é. Às vezes é um sentimento híbrido, às vezes pessoal, outras vezes é apenas o caso de ouvir um som e querer explorar essa energia. Eu sou realmente interessada em como combinar sons díspares pode provocar uma espécie de sensação extasiante. Quando você combina vozes reais e sintéticas, há essa sensação que é menos presa à realidade e mais ilimitada. Ou, quando você combina efeitos sonoros de uma ficção científica sombria com samples de um instrumento de sopro de uma comédia estúpida – isso pode ser dissonante mas realmente atinge o ponto para transmitir uma sensação mais complexa do que apenas “feliz” ou “triste”. Eu amo reconhecer que estou tendo um sentimento, mas não ser totalmente capaz de categorizá-lo. Isso é libertador.
Um dos principais elementos que faz de sua música tão especial em minha opinião é o fato de você utilizar sons do cotidiano e até de desastres naturais em suas melodias. O interesse por esse tipo de som é antigo em você? Você se lembra de alguma primeira experiência com esses tipos de som, ou seja, algo que funcionou como um “start” para esse interesse?
KG: Eu gosto de usar sons que não são obviamente musicais. Eu também amo utilizar sons que não são perfeitos ou totalmente limpos e habilitados para música. Se o som é uma gravação pessoal, isso é ainda mais especial para mim. É definitivamente uma intenção antiga que eu tenho, porque eu tenho feito gravações de campo desde quando eu era uma criança, mas eu só fiz música anos depois, como adulta. Eu recolhi gravações de campo por uma década antes que eu escrevesse uma música! Eu esperava que essas gravações iriam somar algo e elas somaram. Eu amo ter acesso à essa antiga biblioteca de sons, mesmo que a maioria deles sejam banais e mal gravados. O fato desses sons serem meus fazem eles parecerem mais especiais.
Em todos os seus trabalhos, nós vimos diversas facetas e estéticas sonoras vindas de sua música. Seus dois LPs, por exemplo, são muito diferentes musicalmente um do outro. Pensar em inovar é algo constante para você? Você já pensa sobre qual direção você quer para suas futuras obras?
KG: Sim, eu não acho que posso fazer discos em sequência que soam muito parecidos um com o outro. Eu estou trabalhando em música nova e ela se recusa a soar como meus LPs mais antigos. Ao mesmo tempo, eu acho que dará para escutar partes de mim do passado nas próximas músicas também. Agora eu estou realmente focada em encontrar sons ousados que me parecem assustadores mas também divertidos, e eu estou me apoiando mais em minha voz. Minha voz pode ser grandiosa e expressiva, e eu acho que não mostrei isso de verdade ainda. Eu estou animada acerca de gravar com mais confiança no futuro.
Eu queria falar um pouco sobre o vídeo de “Flow”, lançado recentemente. Eu amei como as cenas da natureza em movimento conseguiram representar quase que fielmente as sensações que eu tive quando eu escutei a música pela primeira vez, emoções que me invadiram de uma maneira catártica. Eu queria saber como foi a sua parceria com Jola Kudela (criadora do vídeo), e como você geralmente contribui com os seus vídeos, uma vez que você já trabalhou como designer de som para alguns filmes.
KG: Eu descobri Jola através das pessoas que comandam a minha gravadora, a Houndstooth. Eles a indicaram como diretora e eu amei como o seu trabalho era único e vivo. Parecia tão alinhado com o que tento fazer, que é misturar matérias orgânicas e grandes emoções com o digital! Jola realmente surgiu com o vídeo inteiro sozinha, eu apenas pedi por alguns pequenos ajustes. Parecia uma companhia incrível para a música, especialmente pelos samples de ondas, tempestades e terremotos no final da faixa.
Para finalizar, você é uma artista que não está tão aberta para performances ao vivo, até por conta da ansiedade que você já relatou ter em outras entrevistas. Com o incrível reconhecimento que Loom vem tendo com o público e a crítica, e com mais e mais pessoas ficando interessadas em sua música, você tem planos para que essas apresentações se tornem mais frequentes (claro, depois da pandemia?). Como um novo fã eu confesso que seria uma experiência incrível presenciar suas canções ao vivo.
KG: Sim, eu tinha planejado minha primeira turnê de verdade por detrás desse disco e foi obviamente cancelada por conta da pandemia. Eu levei alguns meses para superar o quão triste eu estive com isso. Eu não sei quando, mas eu irei tocar ao vivo novamente e eu tenho esperança que estarei ainda mais preparada e reconhecida para estar fazendo isso. As músicas precisam de um espaço com grandes subwoofers para interpretar terremotos e eu brinco de sacudir a sala, sempre que for seguro. E eu espero de verdade que eu possa ir ao Brasil para tocar em breve também. Essa é realmente uma meta de vida, fazer shows por toda a América do Sul. É o meu lugar favorito para viajar.