Um dia desses, acompanhando pela janela do quarto o pôr do sol espremido entre dois prédios, fiquei pensando a respeito dos últimos meses em casa. A (primeira) centena de dias em isolamento foi como um domingo que não acaba nunca, pontuado aqui e ali por novidades na música.
Ainda que tudo esteja meio parado no conforto da minha casa, a internet que tornou um refúgio para artistas que têm tentado tocar seus trabalhos. 2020 tem sido um ano fértil para novos álbuns nacionais e internacionais, as amadas e odiadas lives acontecem diariamente, alguns vão além, promovendo shows drive-in. Enquanto tudo isso acontece, ainda há as notícias no país e do mundo prontas para serem acompanhadas, além do trabalho ou estudo, no tempo ilimitado que temos em casa. Certo? Errado!
Talvez pela ansiedade de viver diariamente um tédio generalizado com doses enormes de muita informação, a verdade é que me desliguei de grande parte dos lançamentos do ano. Então, decidi revisitar alguns álbuns que tivessem um clima introspectivo, mas nada melancólico. Parecia que Agridoce só precisava de um chamado pra voltar à minha lista dos álbuns mais escutados do mês.
Em meados de 2011, Pitty e Martin se jogaram no projeto paralelo Agridoce, uma dupla “fofolk” que em quase nada se assemelhava à banda principal. Curiosamente, o álbum foi feito em isolamento: a dupla subiu a Serra da Cantareira e fizeram um retiro musical para encontrarem a sonoridade das canções. Nessa pesquisa, encontraram também certa essência da solitude.
O sabor de Agridoce
A suavidade e contradição foram os norteadores do trabalho. Enquanto a voz de Martin soava firme, Pitty contrastava com tons brandos e doces. Uma oposição às letras que tratavam de temas como morte, envelhecimento e distanciamento. Entretanto, essas nuances começam muito antes das vozes ou letras — se fazem presente no nome que batiza o trabalho.
Mais do que as próprias letras, a ambientação também contribui para a sensação de casa e isolamento: algumas músicas foram gravadas ao ar livre, como o caso de 130 anos. A sensação de viagem para um lugar distante é potencializada pelos dedilhados de Martin e a própria natureza se manifestando. Outras, como “Embrace The Devil” — a primeira do álbum —, foram gravadas na casa-estúdio, conferindo um tom experimentalista que tinha tudo a ver com a proposta da dupla.
Em um momento onde o distanciamento se faz necessário, estes detalhes tomam novas proporções, chegando mesmo a ser doloroso lembrar de um mundo recém saído de uma outra pandemia. Com toda sua delicadeza, a vocalista dá vida a “Epílogos”, uma reflexão sobre a vida e a morte em todas as idades. Porém, “Dançando” e “Upside Down” tratam da vida com uma sensibilidade que remete à nostalgia de algo que ainda nem vivemos.
Contudo, “20 Passos” fala exatamente sobre aquilo que se passa ou que já se passou, a própria experiência e o sentimento da troca, para muitos possível apenas ciberneticamente.
Agridoce trouxe ao mundo um álbum que, apesar de ter envelhecido em data, jamais se tornará datado por abordar a natureza e psique humana, fazendo-se presente de forma tal em tempos de desesperança que certamente merece ser lembrado por muitos anos. Podemos dizer que é o álbum do distanciamento, mas isto não o torna cansativo: é a beleza da obra, a contemplação de si mesmo.