Na semana passada, o cultuado Blonde — segundo disco de estúdio de Frank Ocean — comemorou quatro anos de lançamento. E desde 2016, pouquíssimos registros tiveram o impacto artístico e comercial na indústria que essa obra teve; por isso, não foi a toa também que Blonde esteve presente em diversas listas de melhores álbuns da década passada, alcançando até a primeira posição em alguns veículos. Mas o que faz de Blonde tão especial?
Existe algo que eu sempre leio sobre o disco e que talvez seja o senso comum que eu mais concorde: ele consegue representar uma geração. E muito mais do que se debruçar nas qualidades melódicas e nas suas inovações, é preciso ir mais além para conseguir dimensionar o tamanho de Blonde para a história recente da música, e a sua relevância para quem o escuta.
Mas aí chegamos em outra questão: afinal, por que Blonde é tão representativo? É o que eu vou tentar responder nas próximas linhas, olhando pro contexto de quando o álbum foi lançado e para algumas características que encontramos nas próprias canções.
Uma obra real, que fala pelo artista e pelo mundo
Em uma lista que eu idealizei aqui no Audiograma sobre alguns discos para quem quer conhecer o R&B contemporâneo, eu falei sobre o primeiro trabalho de Frank, channel ORANGE. Um dos pontos que eu mencionei sobre o material é o fato dele ter proporcionado a oportunidade para que as pessoas conhecessem Frank um pouco mais; questões sobre a sua sexualidade, sua criação e onde ele se enxergava como artista aparecem constantemente no álbum lançado em 2012.
Esses tópicos aparecem de forma ainda mais intensa e central em Blonde; afinal, desde o momento que Frank alcançou o grande público, especialmente depois de ter sido premiado no GRAMMY’s em 2013, houve a sua transformação em alguém com uma personalidade cada vez mais reclusa. Para dar alguns exemplos, é muito difícil você achar uma entrevista com ele da época do lançamento de Blonde, ou até mesmo apresentações ao vivo com músicas do disco no Youtube, visto que shows não eram (e ainda não são) algo frequente para Ocean. Outra prova dessa reclusão é o seu Instagram, que até pouco tempo era trancado. Automaticamente, isso fez com que Blonde se tornasse uma forma de Frank se expressar com quem o admira.
Quando Frank tomou a decisão de ser mais reservado, tudo que ele faz automaticamente acabou soando mais orgânico, especialmente na arte. E assim, ele faz com que as pessoas conheçam quem ele verdadeiramente é, através de sua obra. E por ser mais orgânico, tudo que encontramos ali parece de mais fácil identificação. É por isso que os temas abordados no álbum, apesar de variados, conseguem nos tocar: porque Blonde é um disco sobre ser real. Ao ser uma obra enigmática, ele consegue nos retratar como os seres complexos que somos.
Blonde e a dualidade do homem
Partindo do que foi dito no parágrafo anterior, há dois grandes pontos que Frank tenta transmitir em Blonde: o primeiro deles é a questão da dualidade. Ela é um aspecto importante do álbum, pois demonstra como, além do artista, nós somos pessoas que não querem ficar presas a um só rótulo, e ter “dois lados” se tornou um traço de nossa personalidade, e não uma perda desta.
Essa dualidade é representada em Blonde já na capa, estilizada como “blond”, mesmo que oficialmente o nome do disco seja Blonde, fazendo alusão à bissexualidade de Frank. Essa dupla face também é presente na construção das canções; “Nikes” possui duas partes, e em ambas a voz do cantor se difere. Em “Ivy” ocorre algo parecido, com a distorção vocal do final da canção, soando quase como uma criança em uma canção que trata exatamente de memórias do início da juventude.
Ser dividida em duas partes é simbólico também na faixa mais famosa de Blonde, a incrível “Nights”; a mudança de batida não apenas divide a canção em duas, como serve para marcar a metade exata do disco. A sua letra também é dividida entre trechos que Frank encara a sua vida atual e a sua infância pós-Nova Orleans. Assim, caminhando entre dois mundos, o artista narra uma experiência ampla, em que essa dualidade não apenas se torna um ponto em nossa personalidade, como também a representação dos diversos desafios que precisamos encarar. A vida, nos tempos de hoje, nunca é uniforme: ela sempre possui dois lados (e às vezes até mais).
A sexualidade também é “vítima” dessa dualidade; apesar do álbum tratar a questão da autodescoberta/autoaceitação em relação à isso de forma bastante clara, Frank narra as suas experiências com homens de forma muito universal; essas relações soam muito parecidas com qualquer relação nos dias de hoje. Um desses exemplos ocorre em “Self Control”:
Algumas noites você dança com lágrimas nos olhos
Vim te visitar porque você me vê como um OVNI
É como nunca, porque fiz você usar o seu autocontrole
E você me fez perder meu autocontrole, meu autocontrole
Além disso, há momentos em que o cantor parece querer reafirmar a sua bissexualidade, frequentemente apagada (não apenas no seu caso); por isso, outra dualidade dos versos de Blonde ocorre quando Frank utiliza termos tanto masculinos quanto femininos para narrar as suas relações mais íntimas. Assim como é frequentemente debatido, a sexualidade não é algo tão simplista, e o disco fala disso com maestria.
O material representando algo a mais
Outro aspecto que eu acho bastante interessante em Blonde é a forma que Frank consegue usar da ilustração de bens materiais nas suas letras para capturar sentimentos que estão intrínsecos, fazendo com que tudo que é dito nas faixas tenha um duplo sentido, mantendo aquele padrão de dualidade mostrado anteriormente. Não apenas isso, mas exibe como o valor ao material ocorre não porque nos apegamos ao mundo, mas porque aquilo sempre nos traz alguma memória (como um presente). Nossa ligação com o material nunca é apenas com o material.
No caso de Blonde, em sua maior parte, esses bens são modelos de carros, uma das paixões do cantor; cada carro citado possui um significado maior, uma lembrança entrelaçada. O primeiro exemplo acontece em “Ivy”, uma faixa sobre nostalgia e amores passados, em que um modelo de carro é a representação de uma determinada época:
Eu não sou mais uma criança, nunca seremos aquelas crianças de novo
Nós íamos de carro até a casa de Syd, tinha uma X6 naquela época, naquela época
Não importa o que eu fazia, minhas ondas não se formavam naquela época
Tudo era uma droga naquela época, nós éramos amigos
Outro instante em que isso também ocorre é em “Skyline To”; nenhum modelo de carro é mencionado, mas o ato de dirigir é comparado a sua vida, enquanto ele lembra de um verão atípico; o comum é comparado ao ato de dirigir em terceira marcha:
A p**** desse ano passou voando bem rápido
É bem demorada a terceira marcha desse carro
Deslizando para a quinta
O cervo atravessa, os faróis apagam
O exemplo mais claro, entretanto, fica na belíssima “White Ferrari”; a pureza de um relacionamento que remete à bons momentos, além de ratificar que esses momentos não são comuns, como uma Ferrari branca:
Causa má sorte falar sobre esse trajeto
Mente na estrada, seus olhos dilatados
Observe as nuvens flutuarem
Ferrari branca, nos divertimos
(Dezesseis: como eu deveria saber alguma coisa?)
Eu te deixei na Central
Eu não me importei em manter o plano
Mantive minha boca fechada, nós dois somos tão íntimos
Ferrari branca
Cada ouvida, um novo significado
Por fim, além dos tópicos que eu levantei e de toda a inegável qualidade sonora encontrada em Blonde, o que faz dele tão especial e representativo é a forma como ele se reinventa em cada ouvida; eu mesmo demorei pra me encantar com tantas experimentações que o álbum apresenta, e mais ainda pra identificar os caminhos que Frank Ocean buscou com o disco.
Fato é que a cada revisita a Blonde, você consegue pescar uma nova simbologia, um novo aspecto interessante; mais ainda, é nesses momentos que você se sente cada vez mais inserido na obra, e compreende como ele fala tanto de nós mesmos. E é por isso que a sua definição como um álbum que nos representa cai tão bem nele.