Pra quem não conhece muito bem a história do Nirvana, saiba que Kurt Cobain não suportava ser lembrado apenas pelo maior hit da banda, a chiclete “Smells Like Teen Spirit”. Kurt mesmo disse que a letra dessa música não quer dizer nada, apesar de seu riff icônico e os solos de bateria do então recém-chegado à banda Dave Grohl fazerem a cabeça de todo mundo até hoje. Muito pouco, porém, foi falado sobre a real complexidade das letras de várias músicas, parte porque muito de sua história foi ofuscada por tabloides sensacionalistas ou pela controversa e breve vida pessoal do frontman. Mas não era a toa que Kurt gritava tanto: ele realmente tinha muito a dizer.
Nirvana e RuPaul no MTV Awards de 1993.
O (podre) modo americano de vida
O Nirvana começou na metade da década de 80, momento em que Ronald Reagan era presidente dos EUA, o pop invadia as rádios e o cenário do rock’n’roll atingia o seu ápice do machismo. Bandas como Guns N’ Roses e outros expoentes do hair metal ou hard rock sexualizavam as mulheres, sintoma da revolução sexual que foi explorada até o talo pelo capitalismo na época, transformando o corpo, principalmente o feminino, num bem de consumo. Nada contra quem só quer dar uma rebolada na pista de dança, mas, convenhamos, a urgência em trazer à tona temas mais sérios era forte – e Kurt, principal compositor das letras do Nirvana, já estava ligado em muita coisa bem à frente de seu tempo, nadando contra uma corrente da crescente filosofia do american way of life, do luxo, do consumismo e da desigualdade social e de gênero.
Claro, estamos falando dos anos 80, muitos desses assuntos nem eram tão elucidados como são hoje em dia. Aliás, várias bandas do movimento grunge seguiram esse caminho. Quando se fala em grunge, a primeira descrição que vem de imediato é sujo. Essa é a estética do som e do visual. Mas além do sujo, o que o grunge buscou quebrar é uma onda crescente de alienação, de consumo e da opressão capitalista. O próprio nome “Nirvana” é um conceito do budismo, cujo estado mais alto de transcendência a partir da meditação levaria a uma iluminação da alma separada da mortalidade do corpo. Nada mais anti-materialista do que isso, certo?
Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl.
Envolvimento com questões sociais
Kurt também era pró-direitos dos homossexuais. Ele fazia questão de falar abertamente sobre isso, exigindo respeito à comunidade homossexual, e seu lema era a famosa frase “paz, amor e empatia”. Defensor de todas as minorias, oprimidos e vítimas de bullying, ele incorporava o não-binarismo já no começo dos anos 90, e, apesar de ter tido relacionamentos sexuais apenas com mulheres, dizia ser inclinado à bissexualidade.
Aliás, ele conta em uma entrevista que despertar para o sexismo ao seu redor – ele nasceu e cresceu em uma cidade muito pequena no interior dos EUA – foi algo que o fez se sentir diferente e deslocado dos homens durante toda a sua vida, sendo mais comum que fosse amigo de meninas na escola, o que o fez perceber o quanto elas eram oprimidas. Ele era um garoto loiro, classe média, que se destacava artisticamente na escola e com todos os privilégios possíveis. O que o torna diferente foi ter reconhecido esses privilégios tão cedo, a partir da própria experiência e crítica ao meio em que vivia. A banda Pansy Division, inclusive, fez um cover do famoso hit chamado “Smells Like Queer Spirit”, o que Kurt apreciou muito. “Homossex rules” e “God is gay” (“Sexo gay é demais” e “Deus é gay”, em livre tradução) foram algumas das frases que ele pichou nas ruas em sua adolescência, tendo, pela última, sido detido pela polícia.
Ele passou a se interessar pelo feminismo principalmente após sua paixão pela então vocalista da banda punk Bikini Kill, Kathleen Hanna, conhecida militante e ativista feminista. Seria forçação de barra chamarmos Kurt Cobain de feminista, mas ele era pró-feminismo e anti-sexista sem a menor sombra de dúvidas. Inclusive, muito antes desse termo ter se popularizado, ele denunciava a masculinidade tóxica – sabemos o tamanho do desprezo que ele tinha pela (falta de) personalidade de Axl Rose, por exemplo, cuja letra da música “One In A Million”, lançada na época, xingava e atacava gays e imigrantes.
Letras anti-sexistas do Nirvana
Assim, separei e cinco músicas do Nirvana que já abordavam esses temas lá na época. Vem comigo:
# Polly
A canção mais famosa dessa lista foi lançada 1991 e é a sexta faixa do álbum Nevermind. Ela foi escrita depois de Kurt ler uma notícia sobre uma menina de 14 anos que foi sequestrada e abusada, e narra essa história do ponto de vista do abusador. Ele era advogava fortemente contra o estupro na mídia, tendo dito o que pra gente hoje é óbvio: “o problema é tentam educar as meninas a se defenderem, quando o que deveriam estar fazendo é educar os homens a não estuprar”.
# Sappy
“Sappy” é provavelmente a música mais declaradamente anti-sexista da banda. Foi escrita em 1988 e ia ser lançada no In Utero, em 1993, mas de última agora acabou entrando para uma coletânea do álbum No Alternative, um coletivo de várias bandas em prol da arrecadação de fundos para a luta contra a AIDS. Ela fala sobre co-dependência e relacionamentos tóxicos.
And if you save yourself
You will make him happy
He’ll keep you in a jar
And you’ll think you’re happy
He’ll give you breathing holes
Then you’ll think you’re happy
He’ll cover you with grass
And you’ll think you’re happy
Now
You’re in a laundry room
You’re in a laundry room
Conclusion came to you
Numa tradução livre da minha parte, começamos pelos primeiros versos. “Save yourself” é uma expressão análoga à “se preservar” em português, algo como “se dar valor” e manter a virgindade. Então, temos:
“E se você se preservar,
Você vai fazê-lo feliz
Ele vai te manter numa garrafa
E você vai achar que é feliz
Ele vai fazer furinhos pra você respirar
E você vai achar que é feliz
Ele vai te cobrir com grama
E você vai achar que é feliz
AgoraVocê está em uma lavanderia,
Você está em uma lavanderia
E a conclusão chega até você”
# Pennyroyal Tea
“Pennyroyal Tea” foi uma música bem controversa lançada em 1993. Além de falar sobre temáticas de depressão, distúrbios alimentares e dores crônicas (Kurt tinha uma dor crônica de estômago intratável), “pennyroyal tea” é um tipo de erva cujo chá dizem ter propriedades abortivas. Apesar de não falar literalmente da luta feminista pela pró-escolha, ele usa da metáfora do aborto como uma maneira de tirar a vida dentro de si.
# Ain’t It A Shame
Essa é uma canção pouco conhecida e que, na verdade, é um cover do músico negro estadunidense Leadbelly, cujos tópicos das canções incluem racismo, trabalho, e a vida do campo, além de ter escrito canções sobre personalidades da sua época como o presidente Franklin Roosevelt e Hitler. Ela possui três estrofes muito parecidas que entoam um ritmo divertido de canção popular. Ela começa:
Ain’t it a shame to go fishin on a Sunday?
Ain’t it a shame
Ain’t it a shame to go fishin on a Sunday
When you got Monday, Tuesday, Wednesday
Oh, Thursday, Friday, Saturday.
(“Não é uma vergonha sair para pescar num domingo?
Quando se tem segunda-feira, terça-feira, quarta-feira
Quinta-feira, sexta-feira, sábado”)
Até aí, nada demais, apenas mais um cara do interior indo pescar num domingo, dia que deveria ser guardado para os compromissos religiosos. Ela continua:
Ain’t it a shame to have a drink on Sunday
Ain’t it a shame
Ain’t it a shame to have a drink on Sunday
When you got Monday, Tuesday, Wednesday
Oh, Thursday, Friday, Saturday
(“Não é uma vergonha tomar uma num domingo?
Quando se tem segunda-feira, terça-feira, quarta-feira
Quinta-feira, sexta-feira, sábado”)
Bom, aparentemente ele também tem um problema com bebidas. E a próxima:
Ain’t it a shame to beat your wife on Sunday
Ain’t it a shame
Ain’t it a shame to beat your wife on Sunday
When you got Monday, Tuesday, Wednesday
Oh, Thursday, Friday, Saturday
(Não é uma vergonha bater na sua mulher num domingo?
Quando se tem segunda-feira, terça-feira, quarta-feira
Quinta-feira, sexta-feira, sábado)
O ritmo irônico e alegre dessa música contrasta fortemente com a forte crítica que ela propõe. Denúncia social que já era rara na época de Leadbelly, que viveu entre 1888 e 1949, e até hoje é difícil de engolir essa música.
# Been A Son
“Been a Son” foi lançada em 1989 no álbum Bleach e relançada em 1992, no Incesticide. Essa música é sobre a irmã de Kurt, Kim Cobain, que se assumiu lésbica logo na adolescência. Na música, ele fala sobre como sua irmã deveria ter nascido um menino aos olhos do pai, que até hoje tem problemas com a sexualidade da filha.
She should have stayed away from friends
She should have had more time to spend
She should have died when she was born
She should have worn the crown of thorns
She should have been a son
She should have made her mother proud
She should have stood out in a crowd
She should have had another chance
She should have fallen on love stance
Na tradução:
Ela devia ter ficado longe dos amigos
Ela devia ter tido mais tempo livre
Ela devia ter morrido ao nascer
Ela devia ter usado a coroa de espinhos
Ela deveria ter sido um filho
Ela devia ter se destacado na multidão
Ela devia ter feito sua mãe orgulhosa
Ela devia ter caído em sua postura
Ela devia ter tido outra chance
Um BÔNUS!
Na música “Territorial Pissings”, do álbum Nevermind, podemos ouvir a sonora frase “Never met a wise man. If so, it’s a woman”, que em livre tradução seria “Nunca conheci um homem sábio. Se conheci, era uma mulher”, uma das mais brilhantes frases de todas do mundo da música, na minha humilde opinião.
E fecho essa sessão com um convite para que vocês ouçam entrevistas sobre o posicionamento político-social do Kurt, que no começo dos anos 90 já era muito mais progressista do que muito roqueirinho de meia tigela por aí :p
“Nunca conheci um homem sábio. Se conheci, era uma mulher”
Lembrou de mais algum músico, banda ou letra que tenha um posicionamento parecido? Comenta aqui!
Paz, amor e empatia!