Com 42 anos de carreira e 11 discos lançados, não é fácil se manter relevante e criativo na indústria da música. Já não é nada fácil o grande feito de manter uma banda na ativa por mais de quatro décadas, para começar. Mas os Pretenders conseguiram! Liderados pela vocalista, guitarrista e compositora Chrissie Hynde desde a sua formação, a banda acaba de lançar o novo álbum Hate For Sale depois de 4 anos sem inéditas. O álbum saiu oficialmente hoje, mas, como a gente é jornalista, teve a sorte de poder ouvir antes de todo mundo e contar aqui pra você se vale a pena ou não escutar. SPOILER: vale sim, corre agora pro Spotify e não perde, meu filho!
Era para o disco ter sido lançado no começo de maio, seguido por uma turnê de 5 meses com o Journey pela América do Norte, mas aí veio o coronga vírus e mudou os planos. Hate For Sale foi produzido por Stephen Street, que já trabalhou com bandas como Blur, The Cranberries e The Smiths e já ganhou muitos prêmios, além de já ter produzido o disco Viva El Amor, do próprio Pretenders, em 1999. O disco conta com a participação do membro original dos Pretenders, Martin Chambers, na bateria. Também é importante a colaboração do talentoso guitarrista James Walbourne, que compôs todas as músicas do álbum com Chrissie. Ainda participaram das gravações os músicos Nick Wilkinson (baixo) e Carwyn Ellis (teclado). Essa formação é a banda que se apresenta ao vivo com Chrissie há mais de uma década, mas que só agora gravou todo mundo junto – um grande acerto, antes tarde do que nunca. Eles soam muito entrosados, tudo orna, tudo flui. E, aos 68 anos, a voz de Chrissie Hynde impressiona por se manter tão preservada, fazendo bonito do começo ao fim e soando tão versátil.
O disco já começa na pegada, aliás, com uma música enérgica, rápida, pesada, cheia de distorção na guitarra, que remete muito ao punk clássico inglês dos anos de 1970: justo a faixa que dá nome ao disco, “Hate For Sale”. Destaque para a gaita nervosa e o vocal mais grave tão característico de Chrissie. Não à toa, a canção é uma homenagem à banda The Damned, um ícone do movimento punk britânico.
A segunda faixa é a balada “The Buzz”, que compara o amor ao vício em drogas e tem um vocal muito bonito da Chrissie junto à uma guitarra marcante de James. Em seguida, somos surpreendidos por um dub, com pegada bem jamaicana, em “Lightning Man”. Diferente, inusitado, mas muito bom! O rock com guitarras em evidência dá o tom na “Turf Accountant Daddy” e “You Can’t Hurt A Fool” é super radiofônica, “sofrência” e ainda mostra toda a potência vocal de Chrissie. “I Did Not Know When To Stop” volta ao rock dos anos 70, com influências de blues e baixo bem marcado. Já a faixa “Maybe Love Is In NYC” parece que saiu direto dos anos 80. “Junkie Walk” tem forte inspiração dos Beatles, além de uma letra inspirada com vocais que se destacam e um solaço de guitarra no final.
A penúltima música do disco, “Didn’t Want To Be This Lonely”, começa com uma bateria incrível e lembra bem os grandes hits do Pretenders. O álbum termina com uma música triste de voz e piano, “Crying In Public”, que fala da dor e da força das mulheres em uma letra que é quase um desabafo e lamento. Impossível não se identificar sendo mulher, mas aqui, acho que a Chrissie deu uma escorregada na composição, poderia ter sido um pouco mais considerada, porque ela canta: “as feministas afirmam que somos todos iguais, mas não conheço nenhum homem que já tenha sentido a mesma vergonha”. Então, o feminismo pede direitos iguais, que sejamos todos tratados da mesma forma, justamente porque nenhum homem nunca sentiu a mesma vergonha que nós. Ela também já esteve envolvida em uma grande polêmica quando, ao relatar ter sido vítima de estupro, deu a entender que a agressão foi sua responsabilidade.
Dito isso, não podemos desmerecer Chrissie, já que sua arte abriu tantas portas para as mulheres na música. Ela sempre foi a líder do Pretenders, fundadora e principal compositora da banda, e sempre se apresentou tocando guitarra e gaita além de cantar. Ver uma mulher no palco à frente de uma banda e tocando instrumentos é extremamente significativo em um meio tão machista. E, se você não conhece a história do Pretenders e da própria Chrissie, saiba que ela passou por poucas e boas e é vitoriosa por ainda estar aqui lançando disco novo décadas depois de fundar o grupo e beirando os 70 anos de idade.
Hate For Sale é um excelente álbum, que desce redondinho do começo ao fim apesar de tantas influências e gêneros diferentes misturados, com potencial para agradar os mais diversos gostos musicais. Rico em influências, com excelentes performances de todos os integrantes da banda, é autêntico e genuíno, conseguindo resgatar a relevância do Pretenders e o auge da banda sem soar mais do mesmo.
Por que a Chrissie Hynde é importante?
Apesar das polêmicas sobre feminismo, a Chrissie é sim muito maneira. E, infelizmente, seu trabalho como artista ainda é subestimado. Quando falamos de mulheres no rock, logo lembramos de Joan Jett, Janis Joplin e Debbie Harry, mas Chrissie não é tão citada. Por isso, resolvi contar a vida e a carreira dela para vocês entenderem por que ela merece respeito e admiração, ainda que às vezes erre dando opiniões controversas em entrevistas:
Chrissie Hynde nasceu e cresceu em uma cidadezinha bem pequena em Ohio, nos Estados Unidos. Ela chegou a fazer três anos de faculdade de artes na Kent State University e a tocar em uma banda com o Mark Mothersbaugh, que depois formou o Devo, mas em 1973, com apenas 22 anos, se mandou sozinha para Londres para estar mais perto da sua cena musical preferida. Virou repórter da clássica revista de música NME (New Musical Express), que existe até hoje, e se especializou em cobrir bandas de rock.
Viu o punk inglês nascer e crescer bem de perto, tocando em várias bandas da época. Chrissie tocou com o guitarrista Mick Jones antes de ele formar o seminal The Clash e passou pelo Masters Of The Backside, projeto do empresário Malcolm McLaren (que depois foi o criador dos Sex Pistols), tendo como colegas de banda os músicos Dave Vanian, Captain Sensible e Rat Scabies, que depois formaram o lendário The Damned.
Em 1978, Chrissie montou o Pretenders com os músicos ingleses James Honeyman-Scott (guitarra), Pete Farndon (baixo) e Martin Chambers (bateria) e, apesar de ter muitas influências do punk rock no som, sempre teve uma sonoridade mais diversificada e elaborada, sendo considerada como parte da New Wave – até porque seus maiores sucessos apareceram já nos anos de 1980, com influência do que rolava na música da década. Quem nunca ouviu “Don’t Get Me Wrong”, de 1986, “Middle Of The Road”, de 1984, ou “Back On The Chain Gang”, de 1982? Hits gigantes, que tocam muito nas rádios até hoje!
E olha que os 42 anos de Pretenders não foram nada fáceis. Depois de lançarem seu primeiro disco, fazerem turnês na Europa e nos EUA e conseguirem chegar no topo das paradas de sucesso da Inglaterra com o álbum mais vendido, além de ganharem o prêmio de artista revelação da revista Rolling Stone, a banda completava três anos muito bem sucedidos de trabalho quando morreu o guitarrista. James teve uma overdose e faleceu aos 25 anos. O baixista Pete, que já tinha sido demitido da banda por abusar de drogas, morreu menos de um ano depois, afogado na banheira por causa de uma overdose de heroína. Pesado. Mas Chrissie decidiu continuar e nunca mais parou. Ah, em 1993 ela perdeu quase todos os integrantes da banda de novo, porque eles foram convidados para tocar com o Paul McCartney em uma mega turnê.
E foi assim, entre muitas idas e vindas e várias mudanças de formação que, acreditem, não são nada fáceis, que ela se manteve firme e forte no projeto, sempre como líder e principal compositora do Pretenders, além da sua carreira solo e outros projetos especiais. Não é pra qualquer um!
Chrissie é uma verdadeira apaixonada por música, por isso consegue ser eclética e engajar em bandas com sons tão diferentes uma da outra sem perder sua personalidade, além de ser uma excelente compositora dona de grandes sucessos, sempre aparecer no palco como guitarrista, reforçando o importante papel e a representatividade das mulheres instrumentistas, além de ser uma ótima cantora e ter uma voz diferente, que se destaca. Ela cantou com Frank Sinatra, Ringo Starr e Cher, tocou no Live Aid e está no Rock and Roll Hall of Fame há 15 anos.
Além de punk e new wave, o Pretenders e a Chrissie em carreira solo sempre trouxeram elementos de rock clássico, pop, jazz, folk e até música brasileira! Para quem não sabe, em 2004 ela chegou a morar no centro de São Paulo, no histórico Edifício Copan, para trabalhar em um projeto de MPB com o filho do Caetano Veloso, o produtor musical Moreno Veloso. Ela até chegou a cantar em português! Em uma recente entrevista para o jornal O Globo, ela ainda afirmou: “Eu estaria agora no Rio gravando com o Moreno Veloso se não fosse a pandemia.”
Em 2016, o Pretenders lançou um disco de inéditas com produção do Dan Auerbach, do Black Keys; e nos anos 90 a Chrissie participou de um episódio da série Friends. Ela é ativista de causas ambientais e de direitos dos animais, é vegana, um ícone fashionista e continua tocando e criando, mesmo aos 68 anos (quase 69!).
Pretenders – Hate For Sale
Lançamento: 17 de Julho de 2020
Gravadora: BMG
Gênero: Rock/New Wave/Post Punk
Produção: Stephen Street
Faixas:
01. Hate For Sale
02. The Buzz
03. Lightning Man
04. Turf Accountant Daddy
05. You Can’t Hurt A Fool
06. I Didn’t Know When To Stop
07. Maybe Love Is In NYC
08. Junkie Walk
09. Didn’t Want To Be This Lonely
10. Crying In Public