A dica de hoje é mais uma banda quarentenada: conheça a Cães de Pavlov, que foi oficialmente formada nesse fatídico e caótico ano de 2020, em plena pandemia mundial.
Apesar de ser recém-nascida no cenário, já é promissora por causa da qualidade do trabalho dos músicos que a integram e pela sua proposta estética – e política. Isso porque ela foi formada em São Paulo pelos músicos Kaneo Ramos, Augusto Passos e Leo Rosa, que já acompanharam nomes como Thiago Pethit, Lobão, Bruno Souto, Juliano Gauche, entre outros. Os três possuem vários anos excursionando pelo Brasil e gravando discos como sidemans (contratados para gravar em estúdio com bandas das quais não músicos oficiais) na última década.
Raízes no stoner rock
É impossível criar arte de qualidade sem considerar a realidade do mundo ao nosso redor. Ou melhor: dizem que a melhor arte é aquela que sublima nossos desejos mais profundos, nossas impressões e sensações do dia a dia. E, em pleno caos que estamos vivendo – especialmente no Brasil, por motivos tão óbvios quanto múltiplos – não podemos ignorar que a nossa subjetividade também pode acabar se encontrando, eventualmente, em meio ao caos e à desordem.
E se teve uma coisa que teve de monte no século XX foi caos, desespero, destruição e desordem. E teve também muito rock’n’roll e suas inúmeras vertentes, graças aos deuses da música. Coincidência? Óbvio que não. É preciso se expressar das formas mais humanas e profundas quando nos deparamos com a brutalidade da realidade.
Por isso, Cães de Pavlov quis se voltar mais às raízes do rock mais cru, especialmente do stoner rock e grunge das décadas de 90 e 2000. As letras trazem questões variadas, desde as últimas crises políticas e sociais brasileiras até a cura de uma ressaca recente de um dos integrantes. Dois vídeos foram feitos durante o período de quarentena: o das músicas “Falso Mito” e “Karma Dharma”, lançado com exclusividade aqui no Audiograma por esta coluna.
Nesse momento, a banda está trabalhando no lançamento do single “Alameda Barros” nas plataformas digitais. A música fala sobre o abismo social brasileiro de alguns bairros paulistanos, influenciados também pela estética punk-brazuca de Kiko Dinucci e pelos riffs pesados da banda britânica King Crimson. Ou seja: fiquem de olho nas plataformas digitais!
Afinal, pra quê serve o rock’n’roll hoje em dia?
Tá, mas estamos em 2020, década da realidade virtual, dos músicos-robôs, dos bebês de Elon Musk. O cenário alternativo está mais furioso do que nunca, e contamos com diversos novos talentos nos surpreendendo diariamente. Então, qual o sentido em voltar com o stoner rock e o grunge hoje em dia?
Foi com esse pensamento em mente que resolvi perguntar aos meninos da Cães de Pavlov sobre qual eles acreditam que é o papel do rock’n’roll hoje. Se liga no que eles disseram:
“O rock nasceu como uma explosão de espontaneidade, por isso seduziu a juventude e ficou muito ligado à ideia de rebeldia. O requebrado de Chuck Berry, a violência musical do punk, os riffs pesados das bandas inglesas… Tudo isso estava ligado à ideia de juventude e sua vontade de liberdade. Apesar de o rock hoje não ser necessariamente mainstream, sentimos que essa é a sua fundação e energia primordial para os milhões de fãs mundo afora.
Depois de uma onda de governos de esquerda ou social-democratas ligados ao establishment, muitos dos grupos ditos rebeldes também se rebelaram contra esses governos. Assim surgiu a figura conhecida por todos nós como o “roqueiro de direita”, o que à primeira vista parece uma contradição. Nesse momento, todos os rótulos pareceram velhos e ultrapassados… “Roqueiro”, “esquerda”, a própria política estava sem crédito para a maioria da população. Isso foi demonstrado pela abstenção recorde nas últimas eleições.
“O rock também pode falar de coisas simples, não precisa ser sempre profundo”
Vimos que era uma boa hora para construirmos uma sonoridade crua e pesada que representasse uma crítica a esses novos governos que vêm surgindo depois da derrocada dos governos de esquerda. Isto é, os populistas ditos “alt right” ou direita alternativa. Também criticamos as táticas de manipulação de grandes conglomerados econômicos – que são quem realmente controla a política mundial – ligados tanto aos governos de esquerda quanto aos de direita.
O nome da banda faz referência aos cães usados nos experimentos do cientista Ivan Pavlov. Totalmente alienados da função que exerciam no laboratório, aprendiam a apertar botões quando ficavam com fome, ou eram manipulados a sentir fome quando ouviam um ruído específico. Por isso, esses cães são a metáfora perfeita para a sociedade contemporânea refém do interesse de conglomerados que controlam quase a totalidade do capital do mundo, sem que saibam seus nomes ou reais interesses.
Apesar disso, o rock também pode falar de coisas simples, não precisa ser sempre pretensiosamente profundo. Assim fez Chuck Berry, por exemplo, quando fala sobre querer passear com sua namorada de carro, com isso exprimindo um autêntico desejo da juventude. Por isso, também temos músicas sobre a cura da ressaca, pensamentos existenciais, e questões do nosso cotidiano. Essa pergunta é difícil, mas acredito que conseguimos revelar pelo menos a ponta do iceberg com o que sentimos!”
Com essa resposta que é uma aula de sociologia, nem preciso falar mais nada, não é mesmo? Agora, o melhor que a gente pode fazer é torcer para que eles encham os nossos ouvidos e corações que gritam por liberdade com suas criações musicais e poéticas.
Ouça “Falso Mito” na íntegra e, com exclusividade para o Audiograma, confira o clipe gravado todo em quarentena da música “Karma Dharma”: