Quando foi lançado há cinco anos, To Pimp A Butterfly teve de imediato um impacto positivo levantando discussões importantes. O terceiro álbum de estúdio de Kendrick Lamar confirmou como Lamar é um artista politizado e que quer transformar o mundo com a sua arte; esse status havia sido construído também com seus dois LPs anteriores, Section.80 (2011) e good kid, m.A.A.d. city (2012).
No primeiro, Lamar abordava em seus versos uma das épocas mais prejudiciais para a comunidade preta nos EUA: a epidemia das drogas e a guerra nesse sentido promovida pelo governo Reagan, nos anos 80. No segundo, Kendrick contava histórias que misturavam ficção e fatos reais de sua própria vida para retratar como foi ter crescido em Compton, uma das regiões mais violentas de Los Angeles.
Em To Pimp A Butterfly, Kendrick não apenas discute sobre a vida do homem preto nos EUA/América, como também resolveu apontar as raízes do problema, chegando ao ponto de como o Estado, a indústria de entretenimento e o modo de vida americano contribuem para a violência e o racismo contra ele. Por mais que esses questionamentos tenham ocorridos em 2015, eles também podem (e devem) ser feitos em 2020.
Em 2015, To Pimp a Butterfly já era uma mensagem poderosa
Não é à toa que To Pimp A Butterfly até hoje é reverenciado, sendo inclusive objeto de estudos acadêmicos; podemos dizer que o álbum nasceu com a atemporalidade ao seu lado, graças à amplitude com que o trabalho trata o que se propõe a discutir. Em 2015, com toda a onda de protestos nos EUA graças a cada vez mais crescente violência policial, o álbum veio na hora certa, servindo como porta-voz das pessoas que viviam nesse sistema de opressão e supressão de direitos.
Era possível se enxergar nos problemas levantados em toda a obra de Kendrick; até por isso, ‘Alright’, uma das faixas mais famosas do álbum, se tornou um símbolo das manifestações que ocorriam naquela época. Afinal, a faixa, além de escancarar a questão da violência pessoal, também frisava como baixar a autoestima da população preta e deixar florescer o ódio era uma forma de manter o que havia de errado. Os versos mais emblemáticos da música sintetizam isso:
“Você não saberia
Nós estivemos feridos, estivemos caídos antes
Mano, quando nosso orgulho estava baixo
Olhando para o mundo tipo ‘Pra onde a gente vai?’
Mano, e nós odiamos a polícia
Quer nos deixar mortos na rua por show
Mano, eu estou na porta do pregador
Meus joelhos estão ficando fracos, e minha arma pode explodir
Mas nós ficaremos bem”
Analogias que dizem muito
Uma das grandes qualidades de Kendrick como lirista é que ele consegue criar storytellings e analogias que representam algo ainda maior. Em good kid, m.A.A.d. city, por exemplo, ele narra as “tentações” e a perspectiva de alguém que sabe que a qualquer momento pode ser consumido pelo ciclo de violência que o cerca, centralizando isso na figura de Sherane, um interesse amoroso de Lamar e, ao menos na história do álbum, prima de um homem que faz parte de uma gangue. A narrativa funciona como um filme, lembrando em certos momentos a obra cinematográfica Boyz N The Hood: a história do “menino bom” em uma região cada vez mais perigosa.
Em To Pimp A Butterfly, apesar da estrutura da obra funcionar como um livro recheado de contos, Kendrick também acaba sintetizando as questões abordadas na obra em dois personagens: Uncle Sam e Lucy (abreviação para Lúcifer). Isso serve como contraponto em relação às mensagens positivas de TPAB: a autoaceitação, o respeito pelo próximo e conhecer você mesmo. Nesse sentido, Uncle Sam e Lucy (figuras que representam o American Way of Life/Capitalismo) são uma barreira para que as pessoas pretas alcancem esses três pontos.
O primeiro debate de TPAB: o tratamento da indústria com os artistas negros
‘Wesley’s Theory’ e ‘For Free?’ vão em direção à exploração dos artistas negros que tem como responsável a própria indústria do entretenimento (um dos braços mais ferrenhos do American Way of Life); é mostrado que a figura deste não é tão respeitada por esse setor, uma vez que a indústria espera que ele acabe agindo de uma determinada maneira.
“Qualquer coisa, veja, meu nome é Tio Sam, Eu sou seu cão
Filho da ****, você pode morar no shopping
Eu conheço o seu tipo (É por isso que sou gentil)”
A crítica à indústria musical também aparece em ‘For Sale?’, outro interlúdio de To Pimp A Butterfly; nessa faixa, é invocada novamente a figura de Lucy, oferecendo tentações e “desvirtuando” os artistas. Mais do que isso, é possível enxergar como a indústria e o público branco espera que um artista preto se comporte, e como algumas ações o transformam na figura de alguém que é apenas um produto, que não pode fugir de um determinado estereótipo.
A dualidade entre o amor próprio e o ódio de si mesmo
É interessante como To Pimp A Butterfly consegue ir além do empoderamento e da importância de se amar; ele explora os limites do amor e do ódio, e consegue revelar como fazer com que pessoas pretas se odeiem é uma ferramenta essencial do racismo e da desigualdade.
‘King Kunta’ e ‘i’ transmitem as mensagens mais positivas, frisando que é possível se amar e se sentir importante; especialmente em King Kunta, utilizando a figura do escravo de Roots, Kunta Kinte, é mostrado que é possível ter pensamentos positivos enquanto se luta pela sua liberdade.
Já em ‘u’, temos o esgotamento mental, a depressão e os pensamentos de alguém que, mesmo sendo bem-sucedido como artista, se odeia por não estar presente em sua comunidade e tentar mudar a situação de outros. Uma conversa de Kendrick consigo mesmo, onde o mesmo não cansa de afirmar:
“Amar você é complicado”
O racismo e o capitalismo andam de mãos dadas, e o Estado como condutor da violência
Já foi dito anteriormente que a atemporalidade de To Pimp A Butterfly se deve ao fato de não apenas refletir sobre a situação atual em relação às problemáticas raciais, mas como a sociedade chegou nessa situação. Isso ocorre especialmente por conta de como Lamar consegue partir do fato de que os fundamentos do capitalismo e imperialismo dos EUA influenciaram diretamente na vida do homem preto, acarretando em ondas de violência.
‘Institutionalized’ e ‘How Much a Dollar Cost’ levantam dois paralelos que caminham juntos: como a busca obsessiva pelo dinheiro e o consumismo (ou seja, o American Way of Life) impede com que você conheça a si mesmo (elemento posto nas faixas ‘Momma’ e ‘You Ain’t Gonna Lie’). Esse paralelo pode ser feito em todos os lugares do Ocidente, visto que o American Way of Life ainda é predominante e exportado para outros países, como forma de dominância.
Além disso, outra discussão precisa de TPAB é a contribuição do Estado para que a comunidade afro-americana se destrua internamente, tanto com o apagamento cultural que esse grupo sofre, quanto em relação ao ciclos de violência perpetuados dentro desses grupos, e impulsionados pelos governantes. Nada melhor do que esses versos de ‘Hood Politics’ para explicar a situação:
“As ruas não me decepcionam agora, elas me contam que é uma nova gangue na cidade
De Compton ao Congresso, viaje por toda a parte
Isso não é nada novo, mas uma gripe de novos Democrips e Rebloodlicans
Estado vermelho versus estado azul, qual você governa?
Eles nos dão armas e drogas, nos chamam de bandidos
Faz com que eles prometam f*der com você
Sem camisinha, eles f*dem com você, Obama diz: ‘O que fazer?’”
O Homem Mortal
Por fim, para compreender o porquê TPAB é tão importante, precisamos ir para a última faixa do disco, ‘Mortal Man’; na primeira parte, Lamar se coloca como um porta-voz da injustiça para a comunidade preta, mesmo reiterando que ele é apenas um homem mortal, que cometerá erros. Mas além disso, a canção tem uma dimensão essencial para a obra por outros dois motivos: o primeiro é o poema recitado por Kendrick e que aparece durante todo o álbum, e que aqui toma a sua forma final e frisa novamente o que o rapper quis dizer o tempo todo, tocando nas temáticas do álbum:
“Eu me lembro que você estava em conflito
Usando indevidamente sua influência
Às vezes eu fazia o mesmo
Abusando do meu poder, cheio de ressentimento
Ressentimento que se transformou em uma depressão profunda
Me encontrei gritando no quarto de hotel
Eu não queria me autodestruir
Os males de Lucy estavam ao meu redor
Então eu corri para obter respostas
Até eu chegar em casa
Mas isso não impediu a culpa de sobrevivente
Indo e voltando tentando me convencer das listras que ganhei
Ou talvez como a A-1 a minha fundação foi
Mas enquanto meus entes queridos estavam lutando uma guerra contínua na cidade
Eu estava entrando em uma nova
Uma guerra baseada no apartheid e na discriminação
Me fez querer voltar para a cidade e contar aos manos o que eu aprendi
A palavra era respeito
Só porque você vestiu uma cor de gangue diferente da minha
Não significa que eu não possa o respeitar como um homem negro
Esquecendo toda a dor e mágoa que causamos uns aos outros nessas ruas
Se eu te respeitar, nós nos unificamos e impedimos que o inimigo nos mate
Mas eu não sei, eu não sou um homem mortal
Talvez eu seja só mais um negro”
Kendrick também “conversa” com 2pac, refletindo sobre a situação dos pretos nos EUA, mas que também se encaixa em relação à outros países. A gravação que tem como fonte uma entrevista de Pac em 1994 nos revela que os problemas levantados na conjuntura daquela época são os mesmos de 2015 e 2020, e que é preciso de uma revolução para que o panorama se altere.
To Pimp A Butterfly se tornou ainda mais representativo
Os protestos e movimentos antirracistas que estão ocorrendo agora tem uma importância fundamental; o derrubamento de figuras e elementos que perpetuam o racismo, e a busca pelo rompimento do sistema se mostram mais vivos do que nunca. Nesse sentido, To Pimp A Butterfly se tornou ainda mais relevante: além de transmitir positividade, o álbum é uma grande fonte de ensinamentos em relação ao que deve acontecer para que haja a quebra definitiva desse sistema. Por isso, ele é um dos grandes álbuns da história.