É impossível não criar expectativas com qualquer projeto que Fiona Apple esteja envolvida ou seja a criadora. A cantora nova-iorquina pode ser considerada uma das maiores compositoras das últimas décadas, e desde o disco de estreia, Tidal (1996), poucos foram os que não se ajoelharam ao seu talento em criar letras intimistas e melodias que, além de experimentais, cativam o ouvinte. Com Fetch The Bolt Cutters, seu novo álbum de estúdio, temos mais uma amostra desse talento.
O que fez Fiona Apple tão especial?
Fetch The Bolt Cutters é apenas o quinto disco de estúdio de Fiona, que já possui uma carreira com mais de 20 anos. Na década de 90, ela se destacou pela sua voz única e a sonoridade de suas músicas, que combinavam elementos de pop, trip-hop e jazz. Naturalmente, a grande mídia voltou os seus olhos para ela.
Essa atenção fez com que Apple se tornasse uma cantora cada vez mais auto-suficiente nos seus trabalhos e na carreira como um todo; a exposição recebida durante esse período transformou Fiona em uma pessoa que escapa dos holofotes, e com os trabalhos seguintes, pudemos ver uma artista que sabia qual era o seu nicho.
When the Pawn… (1999), Extraordinary Machine (2005) e The Idler Wheel… (2012) são álbuns que possuem estéticas sonoras únicas; mais do que isso, mostraram que Apple fugia de tendências, com trabalhos cada vez mais experimentais e originais. Entretanto, algo não mudou: a capacidade dela em transmitir aos discos sentimentos reais, com letras que abordavam questões íntimas de sua vida. A sua atitude em evitar escutar músicas atuais para preservar sua originalidade é algo que faz dela uma artista excepcional.
Fetch the Bolt Cutters: um exercício de libertação e sobre ser ouvido
Assim como os discos anteriores da cantora, Fetch the Bolt Cutters consegue sintetizar esse intervalo de oito anos sem trabalhos, e as mudanças que o tempo trouxe para ela como pessoa. Além disso, um dos grandes méritos de Fetch the Bolt Cutters é ser um álbum universal, onde o ouvinte pode se enxergar na maioria das faixas, mesmo que se trate de experiências pessoais de Fiona.
O título, inspirado em uma fala da personagem Stella Gibson do seriado The Fall, é sobre se libertar, não apenas de pessoas, mas de sentimentos. O disco se inicia com “I Want You To Love Me”, uma música de amor feita quando Apple não estava apaixonada por ninguém, e antes mesmo dela conhecer o seu mais recente ex, Jonathan Ames. Fiona declarou em entrevista que a música em um certo momento teve ligação com Jonathan quando os dois estavam juntos, mas que após o término isso mudou, pois significados de canções mudam constantemente; um sinal de libertação de sentimentos. Sobre a faixa, destaque para o vocal impecável e a melodia que combina piano e uma percussão caseira, feita de objetos encontrados na casa de Fiona (local onde o álbum foi gravado). Quase todas as canções contém esse elemento que sintetiza como a cantora se abre nesse trabalho.
“Shameika” é um dos pontos altos do álbum: a capacidade de contar histórias de Apple e narrar uma espécie de cenário ao ouvinte transborda nessa faixa. Em meio ao piano e a agressividade misturada com rouquidão na sua voz, Fiona narra a história que envolve uma conhecida da vida escolar da cantora, que a aconselhou enquanto a mesma sofria bullying (“Shameika disse que eu tinha potencial”, ela repete como um mantra no refrão).
À partir daí o álbum explora outra questão: querer ser ouvido. “Fetch the Bolt Cutters” e “Under the Table”, além de serem essencialmente criativas na questão melódica, apresentam o ressentimento de Fiona por ter sido ignorada em alguns momentos. Na quarta faixa, ela fala sobre um jantar que a mesma participou e se sentiu deslocada/ignorada; entretanto, ela não deixa barato, ao soltar no refrão “Chute-me debaixo da mesa o quanto quiser/Eu não irei me calar, Eu não irei me calar”.
Há espaço para Fiona conversar com o ouvinte sobre traumas e como convivemos com isso; “Relay”, com sua melodia cheia de energia e urgência, aborda como inconscientemente alimentamos ciclos de ódio dentro de nós. “Heavy Balloon”, muito mais do que lamentar, reflete como é viver com o fardo de um transtorno psicológico (Fiona lida desde criança com TOC, depressão e ansiedade).
Outro destaque vai para “Ladies”, onde Apple convida todas as mulheres a se unirem, fazendo com que o controle da narrativa por parte dos homens em diversos âmbitos seja evitado. “For Her” é quase um poema falado por Fiona, onde a mesma empresta a sua voz a uma mulher que passou por uma situação de abuso dentro de um relacionamento. Vale ainda mencionar o fato de cada música do disco possuir a sua própria cara, com melodias cheias de nuances e camadas, e que cada vez que forem ouvidas serão percebidas de uma nova maneira.
Fetch The Bolt Cutters é mais uma obra-prima de Fiona Apple
Com seus detalhes sonoros riquíssimos, a voz poderosa de Fiona como ponto central, além das composições de alto nível, Fetch The Bolt Cutters já se coloca como um forte candidato à disco do ano. Mais do que isso, esse é sem dúvida um dos melhores trabalhos de Fiona, por ser extremamente sincero e uma obra que só a cantora seria capaz de criar. Apesar dele ser o mais experimental de sua carreira, nunca vimos Apple tão exposta; ao lermos os pensamentos de Fiona que ali estão, Fetch The Bolt Cutters faz com que conversemos com nós mesmos, e consegue nos tocar. Um álbum que merece ser escutado infinitas vezes.
Fiona Apple – Fetch The Bolt Cutters
Lançamento: 17 de Abril de 2020
Gravadora: Epic Records
Gênero: Indie
Produção: Fiona Apple & Amy Alieen Wood
Faixas:
01. I Want You to Love Me
02. Shameika
03. Fetch the Bolt Cutters
04. Under the Table
05. Relay
06. Rack of His
07. Newspaper
08. Ladies
09. Heavy Balloon
10. Cosmonauts
11. For Her
12. Drumset
13. On I Go