12 de Maio de 2019. O último Dia Das Mães foi também o dia em que eu tive uma das melhores experiências com qualquer show: muita intensidade, honestidade e um certo sentimento de terror foram proporcionados pela banda americana Daughters. E esse momento foi tão especial pra mim que senti que outras também precisavam conhecer esse quarteto vindo de Rhode Island (EUA). Mas afinal, quem são eles?
Pra quem conhece um pouco de noise rock, gênero que está bastante distante do mainstream, o Daughters já é um velho conhecido; de fato, eles estão na ativa desde 2002, e lançaram o seu primeiro EP nesse mesmo ano. Entretanto, eles estão expandindo mais o seu público graças à You Won’t Get What You Want, seu mais recente álbum, lançado em 2018. O disco em questão foi o primeiro trabalho após um hiato de oito anos, e esteve em diversas listas de melhores do ano passado. Esse tempo transformou o Daughters em outra banda, e muitas pessoas (incluindo eu) só entraram em contato com o grupo agora, o que de certa forma faz com que ela seja uma grande novidade no mundo da música.
Canada Songs, Hell Songs e o Self-Titled: o período antes da pausa (2003-2010)
Antes de se debruçar no último disco, é importante falar do período pré-hiato do Daughters, entre 2003 e 2010, até para entender como isso aparece em You Won’t Get What You Want.
O seu primeiro álbum de estúdio, Canada Songs (2003), já contava com dois dos quatro atuais integrantes: Alexis S.F. Marshall (vocal) e Jon Syverson (bateria), além dos ex-membros Jeremy Wabiszczewicz (guitarra), Perri Peete (guitarra) e Pat Masterson (baixo). O LP possui apenas 11 minutos, divididos em dez faixas com um grindcore brutal e caótico. Há alguns fragmentos do que veríamos no futuro do Daughters, especialmente as diversas camadas sonoras de guitarra que se relacionam durante as melodias. Porém, esse estilo apagava completamente o vocal poético e limpo de Alexis, que se limitava apenas a tons agudos que se escondiam nas canções.
A seguir, Hell Songs (2006) veio com uma proposta mais distante do que foi visto no trabalho anterior, além de algumas mudanças na formação; houveram as saídas de Jeremy e Pat, e entraram dois membros que continuam na banda até hoje: Nicolas Sadler (guitarrista que já havia participado do EP de 2002 e era um dos membros fundadores), e Samuel Walker (baixo), além da participação de Brent Frattini, que só iria colaborar nessa obra. Em Hell Songs, o Daughters aposta em uma sonoridade que remete ao math rock, apesar dos membros sempre ponderarem em entrevistas que nunca fizeram um som tão propositalmente pensado quanto os das bandas que pertencem a esse gênero. Aliás, rotular o Daughters é algo difícil, algo que os próprios aparentemente reconhecem.
Já o trabalho seguinte começaria a permitir um maior destaque ao vocal de Alexis; ainda que o som fosse bastante agressivo, já era nítido a técnica vocal peculiar do frontman, que se assemelhava com alguém contando uma história. O disco autointitulado seria o último antes do hiato, já que o Daughters não pagava as contas dos integrantes, e além disso, houveram alguns problemas internos, sendo os principais deles o fato do vocalista querer desistir da banda pelo ritmo frenético das turnês, que acarretavam em um uso excessivo de álcool e drogas, além das apresentações serem muito cansativas.
You Won’t Get What You Want: o renascimento do Daughters (2018)
Após alguns shows esporádicos de reunião no período em que a banda esteve sem gravar algo inédito, o grupo resolveu se reunir para um disco inédito, já que os membros estavam mais amadurecidos pra tocar um projeto. Daí nasceu o trabalho mais recente, resultado de uma série de demos compartilhadas entre os membros via Dropbox, uma vez que todos moravam em estados diferentes, que depois foram aperfeiçoadas no estúdio.
Esse é o tipo de álbum que o Daughters nunca havia feito, com músicas mais longas, composições mais elaboradas e a expansão de mais sonoridades. Cheio de camadas complexas e narrativas interessantes, eles distilam diversas críticas, que vão desde ao crescimento do ódio no mundo e chegam até ao jornalismo musical. O maior mérito aqui é aproveitar muito bem o que havia dado certo nos discos anteriores, isso é, a experimentação em diversos arranjos com o objetivo de despertar um certo incomodo no ouvinte, e juntar isso com os elementos que a experiência trouxe ao grupo.
O trabalho aproveita o melhor de cada integrante, especialmente de Alexis; o vocalista, que também é poeta, apresenta aqui um timbre que lembra Nick Cave, casando muito bem com a melodia mais industrial metal de You Won’t Get What You Want.
Os shows do Daughters e a sua experiência catártica
Se o novo disco é uma espécie de renascimento do Daughters, as apresentações ao vivo servem pra acolher o novo público; por experiência própria, eu posso dizer que ao vivo é aquele tipo de som que parece te dar uma surra, despertando emoções e até um certo choque pela entrega que a banda demonstra. Alexis se torna uma espécie de John Cooper Clarke do bizarro, interagindo ao máximo com o público e externando toda a violência do inconsciente humano na sua voz, de forma bastante sombria. Aqui vai um desses exemplos:
Uma banda que precisa ser ouvida
Há muito mais por trás do som do Daughters, e você só vai descobrir quando escutar os seus trabalhos; é o tipo de música que desperta um sentimento peculiar pra cada ouvinte. Aliás, não espere por faixas que te deixem dentro de uma zona de conforto; a banda americana é interessante justamente por ser uma das poucas na atualidade que atravessam o limite sonoro. Sendo assim, vale a pena dar uma chance pro quarteto; o álbum abaixo vai te convencer que o Daughters é definitivamente diferente de tudo que você já ouviu, sem deixar, claro, de entregar uma certa beleza em meio à esse caos, consolidando-o como um dos grupos mais incríveis da atualidade.