O Audiograma abre espaço para prestigiar um admirável projeto brasileiro, que é essencialmente underground. Trata-se da fanzine Última Quimera, voltada especialmente ao público gótico e apreciadores dessa subcultura.
A revista é idealizada por Freon (Sad) e a primeira edição foi oficialmente impressa no primeiro semestre de 2017, sendo que até o presente momento, foram lançadas oficialmente quatro outras revistas. Numa nota introdutória presente na edição inaugural, Freon explica que ela “nasceu com a coragem de discutir um termo bastante desgastado, que é o gótico”. A motivação que deu luz ao projeto seria “a necessidade de rediscutir e refletir uma subcultura em crise de identidade, com novas formas de entendimento, participação e envolvimento neste século XXI”.
Todo o processo de produção, desde o desenvolvimento das matérias, entrevistas e resenhas, passando pela criação das capas e revisão de conteúdos, contam com colaboradores diversos. Os textos carregam temáticas bem criativas e variadas, que são geralmente constituídas por um pano fundo reflexivo e crítico. Alguns dos assuntos presentes nas edições lançadas são: Góticos: Crise de Identidade, O Feminino e o Gótico, O Fim da Subculturas, entre outros. Além das ótimas abordagens de conteúdo, é preciso mencionar que a disposição dos elementos gráficos é muito bem feita, de tal forma que visualmente as fanzines são muito agradáveis.
É curioso que mesmo na “era da internet”, produções desse tipo ainda sejam tão cativantes. Provavelmente isso ocorre devido à autenticidade das fanzines, que deve sempre ser arquitetada em cima de conteúdos qualificados e visuais bem elaborados. É agradável manusear uma produção assim, folhear, deixar-se levar pelos bons textos e observar atenciosamente as figuras. Acredito que isso sempre será prazeroso, por mais que a internet se fixe tão intensamente em nosso cotidiano, fornecendo uma vasta quantia de informações e conhecimentos. Fanzines são fanzines, isto é, possuem um formato específico que lhes é essencialmente característico e, portanto, definitivamente, são insubstituíveis.
As publicações da Última Quimera são sempre distribuídas gratuitamente aos interessados, embora Sad aceite contribuições financeiras voluntárias que ajudam a arcar com os gastos envolvidos nas produções.
Eu bati um papo com o Sad, pude conhecer um pouco mais sobre o projeto, e trouxe essa conversa para os leitores do Audiograma. Confiram abaixo!
1. Quais foram as principais inspirações para criar a fanzine? Poderia explicar para os leitores em que consiste uma “fanzine”? Provavelmente nem todos estão familiarizados com esse termo…
Basicamente, fanzine é uma publicação independente que gira em torno de um tema específico. Antes da Internet, os zines foram muito populares e essenciais para o desenvolvimento das contra/subculturas (ainda que seu surgimento seja muito anterior). Em países com o Brasil, distante do epicentro das novas manifestações musicais, os zines se estabeleceram como um importante veículo de comunicação e conhecimento nas cenas punk, metal e gótica. Nossas inspirações foram outros zines góticos que fizeram história, como o Enter the Shadows (1992-1993), o De Profundis (2000-2003) e o Espectros (2008).
2. Quais são as maiores dificuldades para produzi-la e lançá-la?
É um grande desafio lançar um zine em tempos de redes sociais, youtube etc. Para muitos, a leitura impressa já se tornou obsoleta. Então, acredito que o maior desafio foi encarar essa realidade. Na parte “técnica”, minha dificuldade reside na formatação gráfica, design do zine etc. Mas encontrei uma parceira que cuida dessa questão, que é a Kei Hrist.
3. Por que as zines são distribuídas gratuitamente ao invés de serem vendidas?
Existe uma certa tradição nesse sentido. Mas também funcionou como uma estratégia para conquistar leitores. Cientes das dificuldades de fomentar a prática da leitura, optamos pela distribuição gratuita. Queríamos que o conteúdo chegasse ao maior número possível de pessoas. E também queríamos deixar claro que o zine não tem nenhum fim lucrativo. Os custos de produção são mantidos através da própria equipe e de eventuais colaboradores. Recentemente, começamos a vender bottons também, como forma de ajudar a bancar esses custos.
4. Há outros leitores que se interessam pela zine, além do público gótico ao qual ela é especialmente destinada? De maneira geral, como tem sido o retorno do público? Vocês recebem o apoio que acham que merecem receber?
Quem lê o zine, geralmente gosta e elogia. Quem lê. É importante (e triste) fazer essa observação, porque já presenciamos pessoas que pegam o material e deixam largado, esquecem, perdem, encaram como um panfleto ou um simples pedaço de papel. Essa é a parte ruim e que desanima. Mas, por outro lado, o retorno positivo de alguns nos dá ânimo para prosseguir. Além dos góticos, interessados no estudo das subculturas e curiosos também se interessam na leitura.
5. De maneira geral, a subcultura gótica é unida? Há reciprocidade nesse meio cultural?
Como todo grupo social, tem seus conflitos. Às vezes em excesso, é verdade. Mas alguns embates são inevitáveis porque envolvem formas distintas de ver e entender o gótico. Procuramos trazer um pouco dessas questões para o zine, debate-las de forma séria. Acho que temos muito a avançar quando aprendermos a separar uma discussão teórica de uma desavença pessoal, por exemplo.
6. Qual é o principal objetivo da revista?
Discutir e refletir sobre o que é aquilo que entendemos como gótico e o papel das subculturas na atualidade, assim como resgatar memórias e arquivos da história do gótico brasileiro. Paralelamente, como já foi dito, estimular a leitura fora das redes digitais e o resgate da produção zineira.
7. Como é possível definir a relevância sociocultural da fanzine Última Quimera?
Acho que o zine é relevante na medida em que busca oferecer um conteúdo de qualidade, feito com esmero e pesquisa. Especialmente no meio gótico, temos visto a proliferação de muita desinformação, “achismos” e temas tratados de forma superficial. Nesse sentido, tentamos criar um espaço seguro, autentico e autônomo.
8. Você se considera satisfeito com o resultado geral da fanzine? Há algo que você acha que precisa mudar e/ou melhorar?
Nunca estou totalmente satisfeito. Sempre acho que preciso melhorar o texto, que faltou alguma informação etc. O formato com 16 páginas não permite matérias muito longas (também uma estratégia para facilitar a leitura), então geralmente sinto que ficou faltando algo.
9. O que podemos esperar das próximas edições de 2019? Poderia antecipar alguma pauta?
O zine não tem uma periodicidade definida, então não sei dizer quando sairá o próximo. As ideias vão surgindo naturalmente com o tempo. Pretendo continuar com o resgate de memórias da cena e a discussão sobre a “crise de identidade” do gótico (cada vez mais diluído em um fashionismo esvaziado de sentido). Uma outra ideia que tenho em mente, seria ajudar a organizar uma exposição de zines góticos brasileiros. Recentemente vimos a expo “Não Temos Condições de Responder a Todos”, focada nos zines punk e isso me deu ânimo de ver algo semelhante com a produção zineira gótica. Quem sabe!
10. Há outras fanzines que você conhece e gostaria de indicar aos leitores?
Recentemente, vimos surgir uma nova leva de zines góticos, de várias partes do país. Temos o Ghosts of Diodati (RS), The Gothic Society Brasil (SP), Noite em Claro (MG), Rigor Mortis (SP), Insulamento (CE) e o Ecos da Escuridão (AM).
11. Que dicas pode dar para quem desejar executar um projeto como esse?
Faça! Mas é importante lembrar que um trabalho diferenciado exige pesquisa, leitura e dedicação. Temos que ter muito cuidado e responsabilidade ao trabalhar com informação. Então minha dica é essa, leitura, pesquisa e empenho. A troca de ideias com outros zineiros é sempre importante também. Absorva as críticas, ouça o leitor, a abertura ao diálogo é fundamental.
Para acompanhar o trabalho, siga o Facebook da fanzine.