A banda Sapataria, de São Paulo, é formada por quatro lésbicas e faz um som punk e hardcore autoral, com letras de protesto em português.
Formado em 2016 e depois de muitos shows pela cena underground, o grupo lançou no dia 14 de setembro o seu primeiro EP, homônimo. Marina (guitarra), Dan (baixo), Zu (vocal) e Isa (bateria) se unem para mandar uma mensagem crua e direta sobre o que é ser lésbica: combater o preconceito da família, enfrentar a auto-aceitação e levantar a voz para situações cotidianas, como ser expulsa do banheiro público (como relatam na faixa “MSB: Movimento das Sem Banheiro”).
Segundo elas mesmas, o EP começa com a frase: “Eu tenho orgulho de ser sapatão” e termina com “Eu não vou me esconder!”, sintetizando o que querem transmitir ao seu público.
O disco é tão envolvente que escutei todos os dias, mais de uma vez por dia, durante duas semanas desde que foi lançado e logo aprendi a cantar todas as músicas de cor. As letras, muito fortes e pessoais, podem chocar e entristecer pela violência da intolerância sofrida por elas, mas ao mesmo tempo inspiram e dão força.
Se você se identifica, a música da Sapataria é um alento e faz com que se tenha vontade de levantar, erguer a cabeça, sair de casa, ser você mesma e reagir. É afronta, sim, mas é muito mais que um lacre. É luta. Pessoal, visceral e genuína.
Entrevistei a banda para saber como foi o processo de composição e gravação:
Onde vocês gravaram? Como foi a experiência no estúdio?
Zu – Gravamos no Estúdio GR, que fica no Jaçanã. Escolhemos fazer lá por conta de boas experiências e referências de amigos. A Thamires, nossa baterista na época, já tinha gravado lá com a Orgânico e o resultado foi muito bom. A experiência foi ótima. Eu e Marina nunca tínhamos gravado em estúdio, então foi uma coisa nova pra gente. Foi a realização de um sonho, porque a Sapataria já esperava esse momento há mais de um ano, mas, por conta do pouco dinheiro e da troca de baterista, esse momento acabou sendo adiado algumas vezes.
As letras são todas muito fortes. Há inspiração autobiográfica? Como funciona a composição na banda?
Marina – As letras são todas relatos de situações que passamos. Por exemplo, “Carta Aos Pais” eu escrevi depois de uma situação lesbofóbica que passei em casa. Minha vontade era de gritar e reagir, mas, por não poder, acabou se tornando uma música. Em geral nossas músicas são criadas a partir das letras, e logo em seguida pensamos em uma melodia e vamos construindo juntas. Todas sempre opinam sobre as criações, é um processo coletivo.
Zu – “Aa Lourdes” eu escrevi diretamente pra minha sogra na época. Todas as músicas são desabafos reais sobre nosso cotidiano. A diferença pra outras bandas é que quase 100% desses problemas estão ligados a gênero ou nossa orientação sexual, o que faz com que todas as músicas acabem sendo feministas e anti LGBTfóbicas.
Como foi montar uma banda só com integrantes mulheres? Vocês já se conheciam? Já sabiam que todas tinham a mesma orientação sexual?
Marina – Conheci a Dan quando eu tinha uma outra banda chamada Chico Assassina, toquei num evento da Caminhada Lésbica e Bissexual e ela assistiu ao show. Nós ficamos afastadas um bom tempo e, quando ela estava à procura de uma guitarrista, lembrou de mim! Na época eu estava com muita vontade de tocar, assisti um show da Charlotte Matou um Cara e aquilo me despertou uma urgência gigante em pegar de volta na guitarra. Em agosto fui na Virada Sapatão junto com a Dan e de lá fomos juntas a outro show da Charlotte. A urgência que era só minha passou a ser de nós duas e começamos a pensar mais sério em formar a banda.
Zu – Nós três nos conhecemos em rolês sapatões, então já sabíamos da sexualidade de todas. Depois, esse ano, procurando uma nova baterista, conhecemos a Isabelle. Quando a Marina e a Dan falaram da ideia de criar uma banda, a necessidade de serem todas lésbicas e que o foco da banda seria esse já estava estabelecido. A Sapataria nasceu pra amplificar a voz das lésbicas, não foi mera coincidência. Precisávamos gritar sobre o nosso cotidiano sem ter que “adaptar” músicas héteros.
Essa letra sobre ter que encarar um ambiente hostil até para usar o banheiro é bem chocante. Isso realmente aconteceu com vocês?
Marina – Eu escrevi essa letra depois de passar por uma situação bem ruim. Duas mulheres estavam conversando enquanto eu lavava a mão e uma virou pra outra em tom de deboche e disse: “Eu não sabia que agora podia homem no banheiro feminino”. É algo comum e que eu passo com certa frequência, tanto das pessoas de fato se confundirem sobre o meu gênero, o que eu tento tratar na conversa, quanto situações de chacota que eu considero mais complicadas. Isso faz com que eu fique com um medo constante e evite entrar no banheiro feminino. MSB foi meu grito de “Eu só quero usar o banheiro, porra! Eu só quero fazer xixi em paz”. Eu mostrei essa música pra Dan, que também passa por isso diariamente, e ela criou o refrão e o arranjo da música.
Zu – Essa é uma situação que acontece muito com sapatonas “caminhoneiras”, gays afeminados, trans, qualquer pessoa com corpo “desviante”. Conheço muitas amigas que evitam banheiros públicos ao máximo devido a acontecimentos assim.
A música ajuda vocês a expurgarem os sentimentos ruins de homofobia? É uma forma de protesto e de terapia?
Marina – A banda é 100% minha terapia, todas as letras que fiz até hoje surgiram do desejo de gritar e não ter espaço.
Zu – É totalmente uma forma de protesto, feita pra ser o expurgo não só nosso mas de outras sapatas como nós. Para mim, é muito bom ter a certeza de que pelo menos uma vez por semana vou encontrar outras lésbicas maravilhosas e gritar. E, quando fizermos shows, vamos encontrar outras mulheres que se identificam e apoiam o nosso som.
No dia 21 de outubro, domingo, a Sapataria vai tocar de graça no Largo da Batata como uma das atrações do protesto musical Hardcore contra o Fascismo (ato contra a eleição de Bolsonaro). Você pode saber mais sobre o evento clicando aqui.
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