No momento que estamos vivendo no Brasil, vejo muita gente dizendo que não se deve misturar música com política. Essa hora a Nina Simone e o Joe Strummer se reviram no túmulo, e foi pensando nisso que entrevistei a banda Asfixia Social, que mistura punk, rock, hip hop, ska, jazz, reggae e hardcore com letras muito politizadas e questionadoras e sempre muito próxima da rua. A banda vem da periferia de São Paulo, da região onde convergem a zona sul (Diadema), a zona leste e o ABC.
O grupo é formado por Kaneda Mukhtar (voz, rimas, trompete e trombone), Rafael Santos (guitarra e voz), Leonardo Oliveira (baixo e voz) e Rodrigo Silva (bateria) e existe desde 2007. O primeiro disco, “A Guerra Na Tua Porta”, foi lançado há exatamente 10 anos e, desde então, o Asfixia já fez um monte de shows pelo Brasil e uma turnê em Cuba, ganhou prêmios, lançou clipes, singles, documentários e um segundo álbum, o “Da Rua Pra Rua” (2012), cujo título também batizou um festival de música que existe até hoje. O Asfixia sempre falou de política em suas músicas – como o single “Matar os Ka$$abs”, também de 2012, que criticava o então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Os shows são muito intensos, cheios de energia e de ativismo, além de a performance dos músicos impressionar bastante. No começo de 2019 a banda irá lançar o seu terceiro álbum, que se chamará “Sistema de Soma: A Quebrada Constrói”. O disco vai sair em um formato especial de livro com CD e conta com a produção de Marcelo Sampaio, parcerias com outros artistas e ilustrações de crianças e adolescentes de 10 escolas públicas e instituições culturais da Grande São Paulo por onde o grupo realizou oficinas e shows. Enquanto isso, o Asfixia vem soltando singles e, não por coincidência, todos têm letras fortemente politizadas.
O último lançamento, feito agora em outubro, foi a canção “Nóiz Tem à Vós”:
A música tem participações do MC cubano El Cepe (integrante do grupo La Invaxión a Occidente), do trompetista italiano Gabriel Rosati, do trombonista Itacyr Bocato e do percussionista Rafael Franja, e tem como tônica o empoderamento do povo e o entendimento de que a arte é um elemento capaz de questionar padrões, alterar estruturas e propor um novo jeito de viver em sociedade. Os outros dois singles são “Sistema de Som(a)”, lançado em março; e “Quem sobra”, de junho, que seguem essa mesma pegada.
Confira a entrevista:
Quando vai sair o disco novo? O que podemos esperar dele?
O novo disco é a soma de todas as nossas influências musicais, passando pelo punk, reggae, samba, hip hop, ska; e nossas ideias em forma de rima e melodia: “Sistema de Soma – A Quebrada Constrói”. A previsão de lançamento é para o começo de 2019, em formato de livro-disco, ilustrado por mais de 1.000 alunos da rede pública de São Paulo por onde passamos com um projeto de poesia e hip hop pra trabalhar a parada realmente em coletivo com a molecada. Já lançamos três singles que fazem parte do álbum.
As músicas já lançadas desse novo álbum têm letras bastante politizadas. Mesmo que a “Sistema de Som(a)” fale sobre música e coletividade, a letra não deixa de lado a referência ao Zumbi dos Palmares e ao movimento abolicionista e entendo que ela coloca a música e a arte como uma forma de combater o status quo e gerar movimento social. Por que isso é importante para vocês? O que inspira as letras da banda? O Asfixia Social sempre teve como principal objetivo passar uma mensagem construtiva, relevante pra nossa reflexão e dos que estão com a gente na caminhada e sintonizam a ideia. Trazer pra linguagem atual do rap um poema de Castro Alves, escrito um século atrás, foi algo que surgiu naturalmente nas discussões da banda pelo fato de estarmos vivendo um momento de muita segregação social, ataques gratuitos aos movimentos sociais e uma onda de discursos políticos preconceituosos e agressivos, ao mesmo tempo em que, vivendo na era da informação, as pessoas têm dificuldade em transformar essa informação em conhecimento. Por isso, citar Castro Alves é importante ali na “Sistema de Som(a)”. A inspiração vem do dia a dia, da correria de cada um dos integrantes e da vivência e convivência na periferia dessa metrópole caótica que é São Paulo, sinônimo de desigualdade social e pouco acesso à educação, cultura e trabalho dignos.
O primeiro disco do Asfixia Social está completando 10 anos de lançamento em 2018. O que mudou de lá pra cá? Vocês ainda tocam alguma música daquela época nos shows? “A Guerra tá na tua porta, não só em Bagdá!” retrata nossa visão em 2008 sobre um dos países mais violentos do mundo, o Brasil. Em 2018, o país lidera o ranking mundial de assassinatos ou mortes violentas no mundo. Não tocamos exatamente as mesmas músicas nos shows, mas os temas são os mesmos, com uma abordagem que buscamos deixar cada vez mais direta e reta para as pessoas: precisamos lutar para evoluir o pensamento por aqui, pois a grande maioria está presa ao que foi estabelecido pelas elites para perpetuar a escravização, de novas formas.
Conta um pouco sobre as participações especiais destes últimos clipes – tem o Bocato, que é muito respeitado já na cena musical, tem alguns DJs, o Bux etc. Em “Sistema de Som(a)”, tivemos a felicidade de reunir um time que temos grande admiração! O trombonista Bocato, que pra alegria geral aceitou nosso convite e nos presenteou com sua genialidade, o querido trompetista italiano Gabriel Rosati, o sambista, amigo e ativista que corre lado a lado Petróleo, do grupo CPF A Tríade, e o irmão DJ Tano, do Z’África Brasil, com quem já trabalhamos diversas outras vezes. Em “Quem Sobra”, além do DJ Tano, o MC Bux do grupo Loucos D’La Mente chegou junto. Além da vasta caminhada no rap nacional, é um cara de muita visão, hombridade e simplicidade, que sempre tá com a gente e fizemos questão de chamar pra contribuir neste novo álbum. Fortaleceu demais e só temos a agradecer!
A banda tem uma van e costuma fazer muitas apresentações nas ruas e também muitos shows nas periferias de São Paulo. Contem um pouco mais sobre como organizaram esse carro e como é o corre de tocar ao relento, de forma independente, em bairros afastados do centro. A gente tem uma Kombi, e quando não há estrutura, a gente leva e faz o corre acontecer. Destes shows, tanto no meio da cultura Hip Hop quanto no meio do Punk e Rock n’ Roll, surgiu o álbum “Da Rua pra Rua” e nossa energia cada vez mais intensa em tocar pras pessoas que tão a fim de ouvir e que trocam essa energia com a gente. É claro que é mais cansativo do que quando temos toda a estrutura fornecida por um produtor ou contratante, mas o que importa é chegar e fazer o som da melhor forma possível. Aos poucos conquistamos nosso espaço dessa forma, ganhamos muitos amigos, fãs e parceiros, inclusive para melhorar a estrutura e abrir caminhos, já que muitas vezes as portas demoraram e ainda demoram para se abrir pra uma banda de protesto no Brasil.
Vocês têm um festival próprio, certo? O “Da rua pra rua”. Como ele surgiu? Quantas edições já teve? Quais foram os pontos altos do festival? Que bandas já passaram por ele além de vocês? Acontece sempre no mesmo lugar? O Festival Da Rua pra Rua surgiu em 2013, para comemorar o aniversário de 6 anos do Asfixia Social. Ele acontece anualmente no ABC paulista, e lá a gente celebra nossa (r)existência. Em 2018 acontece a sexta edição, e por ele já passaram mais de uma centena de bandas de todo o Brasil e do exterior. Periferia SA, GOG, KL Jay, Protesto Suburbano, Tequilla Bomb, Garotos Podres, Favela Soul e muitas outras bandas já se juntaram a nós. É um intercâmbio, um grande encontro da cultura de rua. No ano passado, foram aproximadamente 50 shows em 5 palcos, e devemos isso graças ao que se tornou o Coletivo Da Rua pra Rua em parceria com diversos outros coletivos e produtores que abraçaram o festival e viram o quanto é importante a gente estar junto nessa missão pra fazer a coisa crescer, na sintonia de levar cultura e fortalecer a cultura que propõe a reflexão e o senso crítico. Este ano, acontecerá no Parque da Juventude de Santo André! Só chegar! (Link para o evento aqui)
Kaneda, como você consegue tanto fôlego para cantar, pular que nem um doido e ainda tocar trompete em um mesmo show? O Asfixia Social surgiu no meio de muita energia, da vontade de mudar as coisas, fazer o que tivesse que fazer pra sair da inércia, e tínhamos tantas influências e tantos problemas para resolver nas nossas vidas, nas nossas quebradas, que tudo começou na potência máxima e nunca mais parou! Tivemos que sempre fazer o máximo possível com o pouco que tínhamos, desde o corre do dia a dia até tocar guitarra, baixo, trompete, bateria, cantar, e fazer um som que nos fizesse suar a camisa e colocar pra fora uma ideia coletiva. O fôlego talvez venha disso, de estar fazendo algo que tem sentido! O sopro, as rimas, vem da alma!