Após mergulhar com vontade na casa dos trinta, já posso dizer que ver shows não é algo tão recente assim na minha vida. Essa é uma forma de diversão por aqui desde 2001, quando encarei o meu primeiro (e já finado) Pop Rock Brasil, um festival do qual os mineiros ainda sentem saudades quase dez anos após a sua última edição. Daquela ocupação no antigo Mineirão – que me deu shows do Live e do Soul Asylum, além de diversos nomes do pop/rock nacional – até os dias atuais, muitos foram os prazeres que os palcos me proporcionaram enquanto público e fã.
Assim como você que está lendo, eu também tenho alguns momentos especiais de shows na minha cabeça. Aquela banda que você vê pela primeira vez após ela fazer parte da sua adolescência ou alguma música que você não esperava ouvir ao vivo e teve essa oportunidade são só algumas das várias memórias que um show pode nos dar e, ao olhar para a minha lista, percebi que algumas das realizações que considero como as mais importantes aconteceram nos últimos cinco anos – sendo a mais recente delas no último domingo, vendo o Radiohead em São Paulo. Todas elas possuem um ponto em comum que acabaram motivando esse texto: se tratavam de momentos imprevisíveis e, quando digo isso, não é algo na linha “comprei o ingresso em cima da hora” ou “fui sem conhecer e gostei”. Essa tal imprevisibilidade é fruto do extremo oposto: conhecer bem quem ocupa o palco mas não ter a menor ideia do que será entregue ou como isso será feito por eles.
Ver shows de bandas como Wilco, Pearl Jam ou Radiohead nos últimos anos acabaram me levando para um outro ponto enquanto espectador, que é o daquele que gosta do inusitado, do único, daquele momento especial que justifique as horas de avião ou ônibus, gastos com ingressos ou a cerveja paga – e que nem sempre condiz com o valor. E com isso em mente, percebi que a minha paciência com um show no qual você já sabe o começo, meio e fim vem diminuindo com o passar do tempo. É comum que artistas coloquem toda uma turnê no papel e moldem a sua centena de shows. Essa não é uma prática nova e, provavelmente, a sua banda preferida já fez isso em algum momento. Vários artistas dos quais eu gosto o fazem, e nem por isso eu deixaria de ver um show, desde que sejam turnês diferentes.
Com as transmissões online, festivais sendo vistos pelo mundo, canais de TV exibindo shows com certa frequência, o consumo ainda existente de DVDs e bluray e, claro, todo um trabalho maravilhoso feito por diversos fã-sites ou o nosso amado setlist.fm – que, combinados, acabam entregando praticamente todos os detalhes de uma turnê -, se tornou complicado lidar com uma quase sensação de déjà-vu ao ver certos shows onde até as piadas feitas nos outros países foram reproduzidas por aqui como se fossem algo de total espontaneidade. Sabe quando te contam que fulano morre naquela série que você ama e você só quer matar a pessoa por estragar aquele momento? Isso já não é mais algo tão exclusivo do cinema e das séries e vem acontecendo também no mundo da música e, talvez, eu te dê um baita spoiler agora ao contar que “Give It Away” sempre será a última música em um show do Red Hot Chili Peppers da mesma forma que “Everlong” em um show do Foo Fighters.
Antes que você pense, eu não sou contra artistas com shows formatados e eles podem ser sim interessantes, visualmente bonitos e me divertirem ainda que entreguem o mesmo setlist em todas as suas 100 apresentações pelo mundo, sem trocar sequer uma música de lugar. Isso é algo que funciona até com certa maestria na música pop, até porque seria quase impossível imaginar artistas como Madonna, Beyoncé ou o Justin Timberlake desenvolvendo diversas coreografias buscando atender todas as suas músicas e, depois, montando setlists específicos para cada uma das cidades por onde suas turnês passarem. Tendo isso em mente e todo o trabalho desenvolvido com cenários, criações visuais, coreografias e material humano, percebemos que essa formatação funciona no mundo pop: parece ser a forma ideal de entrega e ainda minimiza as chances de erro.
A situação muda de figura quando falamos de artistas cujas apresentações podem ser vistas – de uma forma bem simplória, eu sei – como “apenas tocar música”. Quando o Maroon 5 se apresenta duas vezes no Rock In Rio e entrega shows praticamente iguais, fica difícil não pensar que a banda ligou o piloto automático e tá assobiando “Deixa A Vida Me Levar”. Em contrapartida, quando o John Mayer entrega setlists diferentes, deixa músicas importantes de fora e foge da obviedade, a gente avança para um outro campo de discussão e avaliação que me parece bem mais interessante. É quase como aquele lema da “experiência” que a gente tanto fala quando o assunto são os festivais, sabe?
Criou-se o conceito de que num festival é preciso entregar mais do que os shows e, para muitos artistas, surgiu também uma necessidade de mostrar no palco mais do que a música propriamente dita. Isso combina com a Beyoncé, que pode nos dar um espetáculo visual incrível – como a sua passagem pelo Coachella -, mas não combina tanto com o The Neighbourhood, que veio para a América do Sul em março e, salvo shows onde tocaram menos músicas, entregou tudo formatadinho com começo, meio e fim, o que não surpreendeu ninguém além dos fãs apaixonados. Para se ter ideia, a única diferença entre os shows apresentados no Cine Joia (dia 21 de março) e no Lollapalooza (dia 25), foi uma inversão entre as músicas 7 (“Scary Love”) e 8 (“Daddy Issues”) nos respectivos setlists.
Volto a repetir, não acho isso errado. São tão poucos os artistas que entregam momentos diferentes dentro de uma mesma turnê ou que são capazes de fugir dessa formatação completa que, ao presenciar isso ao vivo, é difícil não se perguntar o que faz com que a grande maioria acabe se prendendo nesse sistema que, de novo, pode sim agradar a muitos, mas acaba deixando outra parcela com um gostinho de quero mais.
Em 2015, eu vi o Wilco pela primeira vez, dentro do Popload Festival. Foram vinte e sete músicas naquele show e a banda ainda se apresentou mais duas vezes no país naquele mês de outubro. Jeff Tweedy e seus parceiros brincaram com o setlist nas três apresentações, trocaram a ordem das faixas, deixaram coisas de fora, presentearam os fãs com momentos especiais em cada uma das datas que, até hoje, sinto um aperto no coração por ter visto apenas um dos três shows. O mesmo vale para o Radiohead que, se eu já me lamentava por não ter visto em 2009, na turnê do In Rainbows, agora lido com aquela pontinha de tristeza por não ter encarado uma ida ao Rio para ver o que aconteceu por lá na última sexta-feira. Em dois shows, foram 36 músicas diferentes entoadas por Thom Yorke e seus fãs na Jeunesse Arena e no Allianz Parque. Tem artista que não toca trinta e seis músicas diferentes em sua turnê completa, mas o Radiohead fez isso em apenas dois shows e ainda cometeu a ousadia – para muitos – de não tocar “Creep”. Por sua vez, vi o Pearl Jam três vezes nessa vida e, somados os setlists das apresentações, chegamos ao número de 96 músicas tocadas, algo que me proporcionou ouvir 62 músicas diferentes ao vivo – entre canções próprias e covers – de Eddie Vedder e companhia até hoje.
O que eu quero dizer com tudo isso? Em tempos atuais, acredito que pensar fora dessa formatação deveria ser algo quase que obrigatório para o artista ou, para melhor explicar, é algo que se tornou um fator importante na minha avaliação. Se o artista não tem cem dançarinos, como a Beyoncé, não é um cantor que realiza performances de dança, como o Timberlake, ou não cria toda uma performance minuciosamente ensaiada para os palcos, como David Byrne, cabe a ele criar algo capaz de captar a atenção do público, fazer com que ele cante junto e se surpreenda com o que vem do palco. Isso pode ser feito com criações visuais ou só com um setlist diferente e capaz de tornar aquela noite exclusiva para quem está ali.
Ao sair do Allianz Parque após ouvir algo que jamais esperava ouvir do Radiohead ao vivo, a única sensação que ficou foi a de que, se todos sabem qual música abre o show, a quantidade de músicas e a ordem exata na qual serão tocadas e até mesmo as piadas que serão feitas, talvez esse artista não apareça na minha lista de memórias afetivas daqui para frente, mesmo que seja um bom show.
Ou talvez eu só esteja ficando velho e mais ranzinza mesmo…