A arte tem sido ao longo dos séculos uma das principais ferramentas para mudança de diversos aspectos socioculturais, retratando detalhes que outrora passaram com indiferença diante de nossos olhos e destacando o que necessita ser extinto do cotidiano civil.
No entanto, é necessário compreender que nem todos os artistas usam suas criações para denunciar os males da sociedade ou expor os contrastes gerados pelas desigualdades. Muitos optam por temas parnasianos, uma vez que adotar uma causa é atrelar sua imagem a tal, o que significa grande risco para qualquer carreira. Porém, existem aqueles que se arriscam a cruzar a linha tênue da hipocrisia e dar tom político a sua arte, muitas vezes bem sucedidos, outras sendo motivo de rejeição e até mesmo boicote público e midiático.
Selecionamos aqui vários artistas e obras musicais que contribuíram e ainda contribuem para um mundo melhor, com mensagens de tom humanista, canções recheadas de letras sobre aceitação, feminismo e até mesmo desilusão diante do rumo egocêntrico que segue a humanidade.
# Beyoncé – Flawless/Lemonade
O ativismo de Beyoncé foi essencial para que causas como o feminismo ganhassem visibilidade na era do Facebook. Em “Flawless”, Beyoncé incorpora o discurso de empoderamento feminino da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie a uma letra que mescla raízes da própria historia de vida da cantora aos destemidos versos da rapper Nicki Minaj, falando abertamente sobre o controle da mulher sobre sua imagem sexual e seu corpo.
Já no álbum visual Lemonade, Beyoncé configura através do próprio titulo da obra uma metáfora de cunho social que remete a opressão á cultura negra. O lead single do álbum, “Formation” – canção em prol do movimento Black Lives Matter, gerou reações adversas no público americano, houve tentativas de boicote a seus shows e o programa humorístico Saturday Night Live chegou a produzir um falso comercial de um filme que contava a historia do caos gerado na sociedade americana após as reivindicações publicas de Beyoncé e o tom de protesto presente em seu novo álbum.
# The Black Eyed Peas – One Tribe
Mesmo que seja uma canção pouco conhecida, “One Tribe” além de ser uma das melhores produções da banda é também uma música que busca abolir e elevar toda e qualquer diferença a um nível superficial, onde o amor ao próximo prevalece e o mundo se identifica como “Uma só tribo”.
# Cher – Woman’s World
É preciso o entendimento de que cada artista adapta seus protestos a sua essência musical para que possamos falar de ativismo na musica. Se tratando de “Woman’s World”, é realmente necessário ter essa compreensão, afinal, a música em si não apresenta uma letra forte ou de tom sério, se assemelha mais aos hinos gays dos anos 80, com letras de superação, como é o caso de “I Will Survive” de Gloria Gaynor.
O teor ativista da música é quase não intencional e se deve a historia da carreira de Cher, que tem mais de 50 anos de carreira e já relatou em publico os abusos sofridos por mulheres numa indústria que é extremamente machista. Woman’s World é uma experiência catártica, um grito de sobrevivência de uma das grandes veteranas da música.
# Coolio – Gangsta’s Paradise
Gravada para o filme Mentes Perigosas em 1995, “Gangsta’s Paradise” é um retrato brutalmente cru da realidade vivida pelos integrantes de gangues americanas. Sua produção conta com sample da canção “Pastime Paradise”, de Stevie Wonder, e tem uma letra inteiramente marcada pelo estilo rap raiz dos anos 90 e faz diversas referencias, desde a criminalidade até a fé, como acontece no inicio da música onde Coolio menciona o salmo 23:4, “As I walk through the valley of the shadow of death”.
A canção rendeu a Coolio o Grammy na categoria Melhor Performance de Rap Solo em 1996.
# Cyndi Lauper – True Colors
Ativista LGBT desde o início de sua carreira, Cyndi Lauper usou muito mais que sua imagem excêntrica e seu estilo espontâneo para encorajar pessoas de todo mundo a se aceitarem e amarem da forma que são. “True Colors” é até hoje lembrada como um dos maiores hinos da comunidade gay e Cyndi como um de seus imortais ícones.
# Francisco El Hombre – Triste, Louca ou Má
“Triste, Louca ou Má” vai muito além da cartada certa para o sucesso, a música – de extrema sensibilidade, é uma verdadeira obra, com um discurso empoderador, honesto e um clipe que retrata perfeitamente a imagem que sua poesia nos traz a cabeça.
# George Michael – Freedom
O dono de frases como “Sou gay e sou um superstar… Isso não vai dar certo” sempre esteve ciente do preconceito presente no mundo da música e não foi por isso que pensou em desistir.
George Michael é eternizado como um dos grandes ícones da musica pop e sua atitude de assumir publicamente foi vista como heroica. A grandiosa “Freedom” traz em sua essência a aceitação e a felicidade de viver livre.
# Geraldo Vandré – Pra Dizer Que Eu Não Falei Das Flores
A Guerra no Vietnã, a Primavera de Praga, os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, o decreto do AI-5, a Tropicália, o Festival de Cinema de Cannes, etc. Foram estes alguns dos acontecimentos do ano de 1968, fatos que pareceriam indiferentes à música caso aquele também não fosse um ano em que a ditadura militar comandava o Brasil. A obra de Geraldo Vandré foi motivo de alvoroço na época, sendo proibida sua execução e/ou reprodução até o ano de 1985, quando o regime militar chegou ao fim.
# John Lennon – Imagine
“Imagine” é provavelmente a música mais conhecida dessa lista. Além de ser um verdadeiro clássico, a canção ganhou vida na voz de vários artistas.
A poesia de John Lennon clama por um mundo perfeito, a sociedade utópica em que muitos sonham viver. Foi eleita diversas vezes pela crítica especializada como uma das 10 maiores canções de todos os tempos.
# Katy Perry – Chained To The Rhythm
É muito estranho pensar que Katy Perry consiga fazer algo em tom de denuncia, afinal, todos seus álbuns foram sobre diversão, enaltecendo as belezas da juventude através de metáforas líricas e visuais extremamente coloridas e doces, fato que marcou sua identidade artística.
Mesmo que para dizer algo sério, Katy não poderia deixar pra trás o mundo colorido que a consagrou. Em “Chained To The Rhythm”, com participação de Skip Marley, a cantora crítica a alienação, o egocentrismo e a realidade exclusiva do sonho americano.
Para explicitar suas intenções da melhor maneira possível, o clipe conta com um parque temático chamado Oblivia (palavra originaria do termo Oblivion que significa esquecimento), que é uma ácida referencia a forma de pensamento, visão política sobre imigrantes de muitos norte-americanos – em especial os republicanos – e também uma reação pós-Trump vinda de uma personalidade chave da campanha da candidata democrata Hillary Clinton.
# Kesha – We R Who We R
Kesha é um dos grandes ícones LGBTQ’s que surgiram no final da primeira década do século XXI. Após o sucesso de seu álbum de estréia, eis que no fim de 2010 – auge da música electropop, Kesha lança “We R Who We R”, música que desde o título propaga orgulho e aceitação. A faixa foi sucesso imediato, fazendo sua estréia em #1 na parada da Billboard e se mantendo estável durante várias semanas.
A surpreendente performance da canção no programa X Factor Australia, foi entendida como um protesto explicito a regulamentação da lei “Don’t Ask, Don’t Tell”, que não permite a entrada de homens e mulheres homossexuais nas forças armadas americanas.
# Lady Gaga – Angel Down, Born This Way e Til It Happens To You
Desde sua estréia mundial em 2008, Lady Gaga não poupa esforços para fazer do mundo um lugar melhor e usa sua arte como meio de transformação.
Em “Angel Down”, presente em seu mais recente álbum, Joanne, Gaga canta uma letra motivada pela morte de Trayvon Martin, questionando a forma com que vivemos e a desigualdade generalizada.
“Born This Way” é uma das canções header na carreira de Lady Gaga, a música que foi o milésimo #1 na parada da Billboard, também foi a primeira canção a entrar na parada com a palavra “Transgendered”, termo que designa a transsexualidade.
Já “Til It Happens To You”, canção escrita em parceria com Diane Warren para o documentário The Hunting Ground, propõe a reflexão acerca do abuso sexual – tópico já decorrente na carreira de Lady Gaga, que assumiu publicamente ter sido violentada aos 19 anos de idade.
# Lily Allen – Hard Out Here
Lily Allen é conhecida por ser uma celebridade “sem censura”, sempre com declarações polemicas e diretas. “Hard Out Here” é uma letra fácil de memorizar, feita sob a estrutura de rimas e poderia ser outra música pop genérica, sem nenhum conteúdo, mas está longe disso.
A letra é genial por ser simples e não busca embasamento histórico como acontece em outras canções feministas. Lily simplesmente retrata fatos do cotidiano feminino e faz jus ao titulo de celebridade sem censura em versos como “If I told you about my sex life you’d call me a slut. Them boys be talking ’bout their bitches no one’s making a fuss”.
# Luiz Gonzaga – Asa Branca
Mesmo tendo sido escrita em 1947, “Asa Branca” é até hoje a canção que melhor descreve a vida de muitos moradores do sertão que buscam melhores condições de vida nas grandes capitais.
A música, que ganhou versões na voz de grandes ícones da música brasileira como Elis Regina, Gilberto Gil e Lulu Santos, é considerada por muitos um dos maiores clássicos da música brasileira.
# Madonna – American Life, Express Yourself & Like A Prayer
“American Life”, um dos álbuns de menor sucesso da carreira de Madonna, é uma carta aberta ao estilo de vida superficial, a sede de guerra e o sonho americano em geral. O disco foi motivo de críticas e boicote, inclusive por parte de muitas rádios, que se negaram a tocar as musicas descritas como “abusivas e ofensivas ao orgulho americano”.
“Express Yourself” é um dos grandes hinos do orgulho gay e o álbum Like A Prayer, causou alvoroço quando lançado em 1989, pois seu encarte continha informações sobre o vírus HIV e a Aids, numa época que o preconceito contra os soropositivos era imenso.
Além disso, o clipe da canção homônima ao álbum contém a figura de Jesus representada por um ator negro, abertamente um protesto anti-preconceito, visando desconstruir o padrão do Jesus caucasiano construindo ao longo da historia.
# Marina and The Diamonds – Savages e Sex Yeah
Não é segredo para ninguém que Marina Diamandis é uma das maiores compositoras da atualidade. Suas letras repletas de mensagens e seu estilo único de questionar as coisas são marca registrada em sua carreira.
“Savages” foi escrita logo após o atentado de Boston e a canção não busca a superação das dificuldades sociais e a trajetória rumo à utopia. Ao contrario disso, Marina compôs uma letra desiludida com a raça humana, sem fé na bondade e descreve o homem social como uma grande farsa, uma vez que ele é essencialmente mau – provavelmente inspirada pela teoria de Hobbes. Já “Sex Yeah” segue a mesma linha de denuncia sem esperança, porém, o assunto em pauta é o machismo, a misoginia e a opressão histórica a figura feminina.
# M.I.A. – Borders
A relação de M.I.A. com o ativismo não é de hoje e, por isso, qualquer analise, mesmo que extensa, não será o suficiente para detalhar o quão revolucionaria é a mensagem de sua obra. Todos os seus álbuns são repletos de declarações polemicas e sua atitude enquanto artista busca o afastamento do status de superstar e a consagração de sua voz como instrumento de denuncia.
Nascida no Sri Lanka, M.I.A. é a maior voz pró-imigrantes nos dias de hoje e sua arte não poupa ironia. “Borders”, música lançada no início de 2016, narra o drama de um mundo dividido, devido ao pânico pós-terrorismo e a repressão européia aos imigrantes vindos dos países do oriente médio e, consequentemente, o agravamento da xenofobia.
O clipe icônico foi gravado durante a travessia de migração síria e não contem figurantes, sendo todos os presentes no clipe imigrantes reais. Uma obra que fala por si só.
# Nicki Minaj – Black Barbie
A música feita sob a base de “Black Beatles”, de Rae Sremmurd, e produzida por Mike Will Made It é um pedido de Nicki Minaj as jovens negras, para que elas não se sintam inseguras sobre seus futuros, enquanto crescem na América de Trump.
# Racionais MC’s – Nego Drama
A grandiosa obra do rap nacional, “Nego Drama” até hoje arranca suspiros por sua genialidade lírica. A narrativa que conta uma estória é também um grito de revolta à falta de oportunidade, principal indutor a criminalidade.
# Stromae – Papaoutai
Stromae é uma estrela pop que é consciente do poder de sua arte. O cantor belga adotou diversas vezes uma imagem andrógina, a fim de instigar o questionamento às causas de gênero.
“Papaoutai”, embora tecnicamente seja uma música agitada devido à base de electro/house, traz consigo uma mensagem reflexiva. A canção chamou atenção da mídia por retratar o drama do pai ausente com uma letra realmente profunda em contrapartida um ritmo extremamente animado e dançante.
# Bronski Beat – Smalltown Boy
“Smalltown Boy” não requer nenhuma interpretação profunda. A música e o clipe narram a trajetória de um jovem rapaz de cidade pequena, em conflito com a descoberta de sua homossexualidade e a trágica rejeição publica e familiar.
Tornou-se um sucesso entre a comunidade gay nos anos 80 por explicitar uma situação vivida por muitas pessoas naquela época.
# The Rolling Stones – Gimme Shelter
Uma das icônicas canções dos Rolling Stones tem uma seria mensagem: “Gimme Shelter” foi uma afirmativa anti-guerra, criada na época da guerra do Vietnam.
# Tupac Shakur – Ghetto Gospel
Outra representação fiel da vida gangster, a criminalidade, a fé e a superação dos obstáculos vivenciados no gueto americano. O refrão marcante na voz de Elton John é um dos elementos que consagraram a música como histórica.
# U2 – Sunday Bloody Sunday
Um dos vários hits da banda narra o terror de um observador do Domingo Sangrento, confronto entre manifestantes católicos, protestantes e o exercito inglês, que resultou em várias mortes na Irlanda do Norte.
A revista britânica New Statesman classificou-a como uma das canções do “Top 20” das canções políticas.
# Will.i.am & Dante Santiago – The World Is Crazy
Uma das canções presentes em seu álbum #willpower tem como tópico a desilusão e o atual quadro da sociedade mundial, com o desemprego, a juventude desamparada e o aumento da criminalidade, entre outros fatores.
Aos interessados numa abordagem aprofundada do assunto, recomendo a leitura do livro Musicas de Protesto e o Ethos Discursivo no Período da Ditadura Militar, de Maria Aparecida Rocha Gouvêa, e também o Songs Of Work and Protest, de Edith Fowke.
Abaixo, você tem todas as músicas citadas em uma playlist exclusiva no Spotify. Aproveite para seguir o Audiograma na plataforma.