Por: Théo Collin
Parece indiscutível que o momento definidor do que entendemos hoje por música brasileira seja mesmo a década de 1960. A Tropicália, a Jovem Guarda, além da Bossa Nova (que, sendo bem sincero, surgiu por volta de 1958) deram as diretrizes de tudo o que viria a seguir. Este momento mágico gerou álbuns clássicos como “The Composer of Desafinado, Plays” do Tom Jobim, o “Getz/Gilberto” de João Gilberto, o “Tropicalia ou Panis et Circencis” da turma tropicalista, além das influentes gravações do trio Roberto, Erasmo e Wanderléa. A década ainda produziu os primeiros discos de artistas essenciais como Mutantes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé, Gilberto Gil, Jorge Ben (esse monstro menos lembrado do que deveria) entre muitos, muitos outros. Só a enumeração e a grandeza desses artistas já atestam a importância do momento.
Por outro lado, embora rico em composições brilhantes, os melhores trabalhos da maioria absoluta dos artistas surgidos nos anos de 1960 se deu na década seguinte. Afirmo, sem medo de estar errado, que a década de 1970 foi da maturidade absoluta da música feita no Brasil. Já sabendo o caminho que poderia ser seguido, e até mesmo o que seria, enfim, a música brasileira, os compositores e intérpretes poderiam se arriscar e brincar em busca de uma sonoridade para chamar de nossa. Nesse sentido, ninguém brincou como os Novos Baianos.
O grupo, um bando de hippies cabeludos, lançou em 1972 aquele que pode ser considerado um dos mais importantes álbuns brasileiros de todos os tempos: “Acabou Chorare”. Essa obra-prima é um daqueles acontecimentos raros na arte, que acabam por se tornar um marco do que veio antes e do que veio depois. Se a Tropicália já tinha lançado o projeto antropofágico modernista na música brasileira, com sua mistura de ritmos nacionais e guitarras elétricas, os Novos Baianos extrapolaram o conceito e criaram a mais orgânica obra da combinação entre o regional e o rock. Continua sendo um disco insuperável. Não me entenda errado, Os Mutantes definitivamente foram uma banda melhor e com mais obras notáveis, mas ninguém materializou de forma mais clara o desejo tropicalista do que os Novos Baianos em “Acabou Chorare”. Talvez ele seja o disco mais “brasileiro” de todos os tempos. É certamente um dos mais influentes.
A banda havia se formado alguns anos antes, em 1969, quando pouco a pouco os integrantes foram se conhecendo e se juntando. Tom Zé apresenta seu amigo Luiz Galvão a Moraes Moreira. Em um bar, os dois conhecem uma niteroiense oriunda de classe abastada, que passava as férias (ou fugia de casa?) em Salvador. A jovem rebelde era Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, a Baby Consuelo. Ao trio, se juntou Paulinho Boca de Cantor, crooner da Orquestra Avanço, que atuava em bailes e festas na capital baiana. Começou assim, como quarteto, a história do grupo. Eles eram acompanhados pelos Leif’s, que tinha como integrante um excelente guitarrista, o já experiente Pepeu Gomes. Mais tarde, casado com Baby, ele foi integrado definitivamente à banda, formando o quinteto clássico que todos admiramos.
O reconhecimento veio rapidamente, começando pelo espetáculo “O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal” em Salvador. O sucesso leva o grupo para São Paulo, onde começam a se apresentar em programas televisivos e gravam o primeiro compacto, cujas faixas iriam fazer parte do álbum de estreia da banda, o ótimo “É Ferro na Boneca”. Nesse primeiro momento, o grupo está mais interessado no rock e em certa psicodelia, embora já existam traços da mistura musical em faixas como “A Casca da Banana em que Pisei” e “E o Samba me Traiu”. Como a recepção paulista não foi a que eles esperavam, eles se mudam para o Rio de Janeiro, onde as maiores transformações da música (e da vida) da banda se daria.
O interesse que os Novos Baianos despertavam não se restringia a sua música. A personalidade descontraída e anárquica dos integrantes também chamava a atenção. Isso se exacerbou no Rio, onde moravam todos juntos no bairro de Botafogo. Nesse momento, o quinteto principal mais a banda de apoio acabou incorporando Dadi Carvalho, e assim, ao todo, eram doze pessoas em quatro cômodos. Essa busca pela liberdade produzia alguns problemas, como o fato de a banda nunca ter tido uma real estabilidade comercial; os contratos eram sempre curtos e tumultuados. No entanto, a experiência hippie de comuna permitiu que o entrosamento entre os músicos crescesse exponencialmente. Segundo os próprios, eles estavam sempre produzindo, todo dia, sem horário específico, do nascer ao pôr do sol.
Em 1971, a banda já tinha lançado mais dois excelentes compactos duplos, com um som bem pesado. Nesse mesmo ano, começou uma parceria inusitada. Conta a lenda, que quando a banda, ainda sem nome, foi se apresentar em um festival da Record em 1969, alguém gritou “chame aí esses novos baianos”. Estava nomeado o grupo. Pois bem, dois anos mais tarde, começou o contato com um dos mais notórios “antigos baianos”, ninguém menos que João Gilberto. O compositor era fã confesso do grupo, e influenciou a forma como os Novos Baianos enxergavam a música brasileira, apresentando compositores como Noel Rosa e Jackson do Pandeiro. Ele queria que a banda despertasse o gene brasileiro adormecido neles, sugerindo, inclusive, a incorporação no repertório do samba-exaltação “Brasil Pandeiro” de Assis Valente.
Desses encontros ocorridos no apartamento em Botafogo, da vida conjunta e compartilhada surge a obra-prima máxima “Acabou Chorare”. Esse disco alinhou o melhor de cada um dos integrantes, que conseguem o máximo de expressividade e riqueza nas canções. Moraes Moreira forneceu violão base e maioria das composições, Baby Consuelo as maracas, triângulo e afoxé, Paulinho Boca de Cantor o pandeiro. As vozes dos três, suave e alegremente, entoam as letras. Essas ficavam a cargo, principalmente, de Luiz Galvão, que apesar de fazer parte da banda, nunca foi na verdade um músico, sendo mais como um “guia espiritual” do grupo. Os arranjos de Pepeu Gomes, que ainda tocou guitarra, violão solo e craviola, além da ajuda essencial da trupe de músicos que acompanham a banda, como Dadi Carvalho e Jorginho Gomes, somaram-se para criar a sonoridade única e original, complexa em sua simplicidade e simples em sua complexidade.
Os Novos Baianos tinham decidido, segundo os mesmos, a tocar samba como se fosse rock. O encontro natural não se dá apenas na inclusão de instrumentos e temas nacionais sob uma embalagem eletrificada. Não, a fusão ocorre na própria concepção artística, no ritmo, na energia, na transformação, na extrapolação de possibilidades. Existe o desejo de unir os dois mundos, mas a união é orgânica, pois apesar de ideológica, nunca existiu o desejo de defender uma ideologia específica. O resultado não partiu de objetivos que precisariam ser atingidos, mas puramente do amadurecimento musical dos integrantes. O disco soa natural, pois era: a música brasileira era rock, e o rock se transfigurava em música brasileira. Não misturado. Tudo uma coisa só, da infinidade de possibilidades artísticas desse lado do hemisfério.
A importância do disco não é só musical. A verdade é que o brasileiro sempre escondeu em um verniz colorido e sonoro sua vocação à tristeza. A autoproclamada e divulgada alegria brasileira faz muito mais parte do imaginário do que a realidade atesta. O Brasil é um país formado pelos lusitanos saudosos e da violência contra índios e negros. Naquele início de década de 1970, era difícil esconder a tristeza inata. Grandes intelectuais e artistas estavam exilados, jovens eram torturados e mortos, a liberdade de expressão era só uma quimera. Em um momento em que todos se sentiam como quem partiu ou morreu e só queriam seguir vivendo, em que era preciso pedir concessão para sorrir, surge “Acabou Chorare”, cujo título veio de um neologismo criado pela ainda criança Bebel Gilberto, filha de João, já pede para se deixar de lado o choro. Era um disco solar e alegre para tempos tristes e negros. Um petardo irônico e alto-astral que por meio da festa e do deboche devolvia a possibilidade do sorriso e do orgulho brasileiro.
Após o fenômeno de qualidade e sucesso de “Acabou Chorare”, os Novos Baianos continuaram sua jornada. Lançaram mais alguns discos, sempre com algumas pérolas em seu repertório, tiveram baixas e receberam novos integrantes, sofreram desgastes e tentaram novas experiências, perderam e ganharam popularidade… o caminho natural da vida de uma banda. Continuaram com a experiência hippie de vida em comuna e com o futebol no quintal, praticamente uma instituição para o grupo. A banda terminou de vez em 1979, longe de repetir os resultados que tinham sido alcançados em 1972, mas isso era desnecessário. Só é preciso fazer história uma vez.
Ainda em 1974 Moraes Moreira saiu da banda. No ano seguinte estreou na carreira solo com o ótimo disco homônimo, que indico a todos. Desde então continuou produzindo e foi um dos responsáveis pela popularização dos trios elétricos (assim como os Novos Baianos). Baby Consuelo, mais tarde Baby do Brasil foi uma das grandes figuras femininas do rock nacional, junto com Rita Lee. Depois da banda lançou alguns discos com sucesso moderado. Pepeu Gomes se dedicou na sua carreira solo a pesquisa dos instrumentos de corda e ao conhecido virtuosismo, com resultados variados. Foi o mais próximo do que o país teve de um guitar hero, tendo se apresentado com sucesso no Rock in Rio 1985 e em vários festivais de Jazz pelo mundo. Sugiro a todos que não conhecem essa faceta do artista que procurem o seu primeiro álbum solo, “Geração do Som”, ou algumas de suas apresentações em festivais. Paulinho Boca de Cantor teve uma carreira solo mais tímida que seus ex-colegas, assim como Luiz Galvão, que nunca mais conseguiu sucesso como poeta ou compositor. Além deles, alguns dos integrantes da banda de apoio formaram o A Cor do Som, que fez algum sucesso, com sua qualidade instrumental. Apesar de alguns bons momentos dos músicos pós os Novos Baianos, o grande legado da banda foi mesmo a materialização de um caminho novo de se fazer uma música nacional alegre e complexa. Inúmeras de suas canções foram regravadas por cantores consagrados, e a influência que tiveram pode ser sentida na pesquisa do samba e de ritmos populares por artistas do pop rock nacional.
A história da banda nunca foi uma estrada, foi uma viagem. Viagem que aconteceu no momento certo, na década de 1970, a década do amadurecimento. Eles, que eram amor da cabeça aos pés e tiveram a coragem de assustar a todos ao dizer que a vida é boa, mostraram o valor dessa gente bronzeada ao ousar e criar uma amálgama que representa mais do que qualquer outra a alma fraturada brasileira. Fizeram do seu som e da sua carne carnaval, ironizando a seriedade desse povo, ao lembrar que não passamos de malandros. Mostrando como eram, e fazendo o que podiam, andaram por todos os cantos revolucionando o que entendemos por música brasileira. Certamente não passava por suas cabeças a influência que exerceriam ou o sucesso que alcançariam, mas, se quando eles chegaram tudo estava virado, quando foram tudo estava revirado, ao avesso. E indo assim foram deixando sua marca. Se você pensa que a volta dos Novos Baianos aos palcos é só um oportunismo comercial, besta é tu. Esse momento é a consciência da história acontecendo, é dívida artística sendo paga. É, enfim, um momento que impede que a saudade venha nos matar. Os Novos Baianos estão de volta, por isso agora acabou chorare, ficou tudo lindo.