E então você começa a andar, meio sem rumo. Uma pessoa na cabeça e sem vontade alguma de retornar pra casa. Mas o que será casa se não um lugar que se sente bem, que se identifica, ou tem lembranças?! De repente você olha ao redor, para nada em especial. Apenas levanta a cabeça. Parece que os pés às vezes tem vida própria. Bem devagar vai reconhecendo, ponto por ponto, aquela paisagem que não via há tempos: uma ferrovia antiga e próxima da cidade mineradora em que nasci. Como flashs colocados em sua mente e você nem sabe como, ou quando. Só sabe que estão lá, e são nada menos que sua maior ligação com quem mais sentirá falta para o resto da sua vida. São apenas momentos de uma época que não volta mais.
Depois de um tempo já não são mais flashs. Passam a ser memórias. Renovadas. A paisagem atual se mistura com a antiga. Lembranças presas na parte interior de suas pálpebras. De olhos fechados, sente falta de uma trilha sonora. A mesma que entrava pelos seus ouvidos, anos atrás, produzida por um toca fitas velho e uma fita desgastada. A mesma fita de uma viagem não planejada à Milho Verde sem previsão certa de duração. Estradas longas até o Serro, sol quente no teto do Voyage 82, ainda em plena forma nos anos 90. A voz em todas ocasiões era de Bob Dylan, com seus Greatest Hits. Talvez devido à perda precoce, poucas imagens compõem o looping das lembranças. E já faz tanto tempo. Tantos anos. Treze, pra ser exato. Mal sabia eu que a música que substituiria a associação àqueles momentos seria bem mais pesada.
Sua consciência volta aos trilhos debaixo dos pés, calmamente. Lembra que naquela época havia um cachorro vira-lata branco correndo desesperadamente de uma locomotiva; uma curva por detrás das pedras que te fazia lembrar uma cena de filme. Mais ao lado, a rabiola de uma pipa, no fio, lhe parece familiar; e também um campo de futebol, agora sem marcações ou gramas cortadas, a sua esquerda. Tudo vem a sua cabeça passo a passo. E aquele sentimento: já estive aqui, cresci aqui. E foi aqui que passei os melhores momentos com a pessoa que hoje mais me faz falta.
Pouco se falava, nessas caminhadas sem rumo quando eu e meu irmão ainda éramos criança. Muito se observava, aprendia, com a presença imponente, mas tranquilizadora, de quem te colocou no mundo. Ainda assim, um desejo oculto de querer voltar pra casa. Criança não percebe as oportunidades que perde. Hoje você só queria viver ali. Construir a sua casa, sentir a mesma presença. Só para poder lembrar todos os dias daquele que ensinou tanto em tão pouco tempo.
Já anos depois dessa situação nostálgica, veio um dos melhores shows que poderia presenciar, em pleno Lollapalooza, em 2012. O dia começou ótimo: animado (como deveria ser), na presença dos melhores amigos (como deveria ser) e sem preocupações aparentes, numa cidade que só havia ouvido falar. O show do Cage The Elephant levantou os ânimos e não deixou expectativas ruins para o que vinha a seguir. Até porque, mesmo hoje, não sei se foi algo ruim de verdade.
Passada a primeira, a apresentação a seguir era da Band of Horses. O que estava tudo bem, até chegar na última música, quando tudo parou. “The Funeral” é uma música de fácil interpretação, com o qual eu não tinha prestado muita atenção na letra até então. “Estou vindo apenas para te segurar / Estou vindo apenas para te mostrar que está errado / Te conhecer é difícil (…) / Te conhecer todo errado”. Tem um filme¹ que diz que podemos continuar conhecendo as pessoas mesmo depois de sua morte, e acho que é bem verdade. Algumas conversas que tive com amigos do meu pai, anos depois, provaram o quanto ele era brincalhão e descontraído. Fazia piada de tudo, sempre de bom humor. Uma visão um pouco diferente que tinha dentro de casa quando tinha a responsabilidade de educar dois filhos, ainda pequenos. Acho que a paternidade faz isso com a gente. Uma parte de nossa personalidade é contraída, de forma a lidar com a situação. Talvez não ter tido a oportunidade de atingir esse outro lado seja uma das maiores privações que a vida tenha me dado. Ou a morte, por assim dizer.
“Muito tarde para ligar, então esperamos / Me conhecer tão bem é me conhecer todo errado”. Por outro lado, acho que nunca me abri completamente nesses 12 anos que estivemos juntos, também. E o que é que a gente sabe quando é tão novo, não é?! Ainda mais vindo da família tradicional mineira, onde tudo é velado. Mas o verso seguinte doeu mais forte, como diria Zé Geraldo: “Em cada ocasião, estarei pronto para o funeral”. Foi então que eu, em meio a toda aquela multidão, me senti sozinho, com um nó na garganta, segurando a todo custo.
Fato é que nunca estamos preparados para perder alguém tão importante. Ainda mais numa idade dessas. Quem tem costume de ir a festivais sabe que existe uma ressaca bem característica, que mesmo depois de anos a gente consegue sentir a mesma coisa de quando vivenciamos um show específico. Essa ressaca me ocorre sempre que fico muito tempo sem ouvir The Funeral, e mesmo que hoje não seja mais num toca fitas, colocar essa música pra tocar no mesmo lugar que antes ja me transportava no tempo, é como dormir na sala ao invés do quarto: diferente, mas ainda assim a gente se sente bem. Ainda assim lhe é familiar.
No fim, o que sobra é a gente. Inevitavelmente sozinhos no mundo, cedo ou tarde, com doze ou noventa anos. E aquele cheiro de cigarro, a mão grossa, a barriga difícil de abraçar, são só memórias. O olhar de cima pra baixo (nunca mais na mesma altura), e uma vontade terrível de transformar tudo no que era antes, isso é o que fica. Num futuro, quem sabe, recriar a cena. Nem que seja para repetir aquele passeio, invertendo os papéis, e só esperando que depois o teu filho sinta o mesmo que você sente, sempre que retorna. Suas raízes estarão sempre onde se sente bem, sua terra é aquela que você um dia plantou sementes eternas. Apenas tenha certeza que pode, em algum lugar, olhar pra cima e dizer:
‘Estou em casa’.
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