Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio ‘líquido’ da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida”. Nessas poucas palavras o sociólogo polonês Zygmunt Bauman simplifica o conceito de modernidade líquida, em entrevista, pouco antes de seu falecimento.
Bauman nos alertara sobre a liquidez dos tempos em suas obras. A modernidade líquida, no entanto, é clara e abrangente. O prazer antes imensurável de saborear os versos de uma canção marcante foi sendo sugado pela confusão do dia a dia. A rapidez dos apps de straming nos afastou do contato com a música como objeto, a música física. Os encartes dos discos e CD’s se tornaram artigos de luxo para seletos admiradores da primeira arte. Essa rapidez na experiência de musical criou um universo de produções cada vez mais pausterizadas e efêmeras. A avalanche de informações e a necessidade de posicionamentos fatídicos sobre tudo nos transformaram em pessoas constantemente tensas.
No caso de Chico Buarque, essa tensão se tornou um problema ainda maior. Achincalhado por uma parte raivosa do público por suas posições políticas, incluindo fãs ou ex-fãs de seu trabalho, Chico sempre procurou manter a classe diante da avalanche comentários raivosos e ataques descabidos a sua obra, mesmo quando seria impossível não lembrar-se de Goethe dizendo que “não há nada mais assustador que a ignorância em ação”. Para além de tudo isso muitos o apontavam como um artista datado, incapaz de lançar um trabalho consistente e atual.
No olho desse furacão Chico lança o álbum Caravanas (2017, Biscoito Fino), seis anos após seu tímido antecessor, Chico (2011). Em seu 38º trabalho, o terceiro em parceria com o Maestro Luiz Cláudio Ramos, Chico mostra em 9 faixas e menos de 30 minutos, o quanto sua presença como figura ativa no atual mercado fonográfico brasileiro é necessária e o quanto o seu trabalho é atemporal.
Assim como “Querido diário”, primeiro single do disco de 2011, “Tua Cantiga” surgiu acompanhada por uma avalanche de críticas. A frase “Quando teu coração suplicar / Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos / E de joelhos / Vou te seguir” gerou diversos comentários sobre o compositor carioca que foi acusado de machismo por muitos que desconstruíram o verso poético da canção e o encaixaram num contexto totalmente literal. Polêmicas a parte, “Tua Cantiga” é, como o próprio nome sugere, uma cantiga com versos baseados na poesia trovadoresca. Profundo e sincero, o eu lírico se mostra ansioso pelo amor impossível de sua amante e o declama de forma completamente emocionada.
O álbum segue com a também polêmica “Blues pra Bia”. No bem arranjado blues de bar, Chico exalta o amor pela musa Bia que, no entanto, se revela impossível na frase “Talvez fique encabulada / Talvez queira me avisar / Que no coração de Bia / Meninos não têm lugar”. Bia é lésbica, para o desespero de seu admirador. A já conhecida “Moça do Sonho” é a terceira faixa do disco. Parceria com Edu Lobo, a musica foi originalmente gravada pelo próprio Edu, na trilha sonora do musical Cambaio (2001) de João e Adriana Falcão. A música também já foi interpretada pela cantora Maria Bethânia, em sua turnê Maricotinha.
“Jogo de Bola” é mais uma declaração de amor ao futebol. Assim como em “Barrafunda” e “Pelas Tabelas”, dentre outras canções de sua carreira, Chico deixa clara a sua admiração pelo esporte e o exalta em fases como “Salve o futebol, salve a filosofia / De botequim, salve o jogar bonito e Um Puskás eras / A fera das feras da esfera, mas agora / Há que aplaudir o toque”. “Massarandupió” e “Dueto” são parcerias com seus netos Chico Brown e Clara Buarque. A primeira talvez seja a musica mais suave do disco. A percussão e a guitarra havaiana dão um frescor quase de fim de tarde a melodia, enquanto a letra remota a uma praia onde Brown passou sua infância. “Dueto” é uma releitura do clássico eternizado nas vozes de Nara Leão e do próprio Chico. A tímida Clara divide os vocais com o avô e os dois dão um tom mais atual a canção cantando “Consta no Google, no Twitter, no Face / No Tinder, no WhatsApp, no Instagram / No email, no Snapchat / No Orkut, no Telegram / no skype”, fazendo referências ao mundo on-line, sobretudo às redes sociais.
As três faixas finais são “Casualmente”, “Desaforos” e “As Caravanas”. A primeira delas é um bolero cantado quase todo em espanhol, que fala sobre a capital de Cuba, a cidade de Havana e sem dúvida é a canção que menos chama atenção no álbum. “Desaforos” é um samba canção no estilo clássico cuja letra contém um recado para todos os que dedicam seu tempo a atacar o carioca, “Ouço dizer, mas / Deve ser mentira / Nem a tua ira eu acredito que mereça / Ou que vires a cabeça pra enxergar no breu / Um vagabundo como eu”. Já “As Caravanas” é tida por muitos como a música do ano de 2017. A letra faz uma comparação entre os ônibus que saem do subúrbio e desembarcam na zona sul do Rio de Janeiro, e os navios negreiros que por aqui atracaram em outrora. A letra é um choque de realidade. Frases como “Diz que malocam seus facões e adagas / Em sungas estufadas e calções disformes / Diz que eles têm picas enormes / E seus sacos são granadas / Lá das quebradas da Maré e Tem que bater, tem que matar / Engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é mãe da covardia / Ou doido sou eu que escuto vozes / Não há gente tão insana / Nem caravana do Arara”, escancaram uma crítica social tão atual e sagaz que somente o compositor de “Construção” e “Cotidiano” teria a sensibilidade de escrevê-la, totalmente ancorado fora dos gritos ferozes dos que primam apenas por destilar seu veneno e ódio contra tudo e contra todos. A batida de funk que conduz a melodia é um chamariz aos ouvidos mais desatentos para que não deixem o recado passar despercebido. Uma obra prima.
Chico é um artista único. A presença de sua figura ativa no atual mercado fonográfico brasileiro é de importância ímpar. Talvez o mais pungente e visceral de seus últimos três trabalhos, Caravanas mostras que a atualidade pode ser permeada por lirismo, poesia, trovas e até mesmo boleros e que críticas sociais podem ser tecidas além do discurso de ódio.
Precisamos ter tempo para ouvir o que Chico tem a nos dizer. Precisamos entender que Chico é um artista necessário.
Chico Buarque – Caravanas
Lançamento: 25 de agosto de 2017
Gravadoras: Biscoito Fino
Gênero: MPB
Produção: Luis Claudio Ramos
Faixas
01. Tua Cantiga
02. Blues Pra Bia
03. A Moça do Sonho
04. Jogo de Bola
05. Massarandupió (com Chico Brown)
06. Dueto (com Clara Buarque)
07. Casualmente
08. Desaforos
09. As Caravanas (com Rafael Mike)