Falar em Djavan, no senso popular, significa pensar em Leonardo DiCaprio devorando Caetano. Boa parte da carreira do alagoano nascido em 1949 é lembrada principalmente por suas letras acima da média. É difícil escolher uma única canção para eleger como mais querida ou famosa, já que Djavan é um dos artistas mais prolíficos e talentosos do país. Porém, no meu caso específico, quando penso em Djavan, lembro do baixista PJ (Jota Quest) desfilando seu virtuosismo tocando uma releitura de “Se…”.
Sabemos que o baixo é um instrumento muito popular, mas que sofre de um mal crônico: até hoje tem quem afirme não conseguir ouvir o som grave. Ok. Acontece. Certamente, quando pensamos em linhas de baixo, a obra de Djavan dificilmente seria lembrada para servir de referência. Pois é. Hoje espero te mostrar um pouquinho mais do trabalho do Djavan, muito além das canções populares que você conhece.
Só para você ter ideia dos baixistas que já gravaram com o Djavan:
- Luizão Maia: um dos maiores baixistas da história da música brasileira. Gravou com Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso… Pouca coisa, né?
- Sizão Machado: Outra lenda com créditos em obras de Gal Costa, Falamansa, Ivan Lins, Belchior e Elis.
- Arthur Maia: Sobrinho de Luizão Maia, Arthur gravou com Gal Costa, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Lulu Santos, Marisa Monte e Milton Nascimento, entre muitos outros nomes. Faleceu precocemente em 2018.
- Marcus Miller: um dos principais nomes da história do baixo elétrico. Já gravou com Miles Davis.
”Além de Amar” – Milagreiro (2001)
Até ouvir Milagreiro em 2005, 2006, meu conhecimento de Djavan era basicamente resumido aos seus principais sucessos. O baterista da minha banda na época, O Móbile, sabia que eu gostava de fritar ouvindo Marcus Miller. Ele chegou com esse disco do Djavan em um ensaio e falou: “escuta a música oito”. E eu obedeci. Foi amor à primeira vista.
A letra, como de praxe, é linda. Perfeita para aqueles dias em que a gente chora porque perdeu alguém especial. O encaixe de letra com os arranjos da guitarra, teimando em dar apenas uma nota por vez, dão aquela sensação de que estamos olhando o mar e refletindo.
As notas iniciais do baixo, abafadas, estão lá, chorando e sofrendo com a garganta apertada. Aí temos a primeira frase, com 0:34. O baixo começa a “falar”, depois tem outra frase aos 0:42. Miller começa a deixar as notas respirarem para fazer a cama para a voz no refrão.
O solo, a partir de 1:51, acompanhando dos solfejos baixinhos de Djavan, é uma das coisas mais lindas que você vai encontrar nesse site hoje. Não sei se deu para perceber, mas essa é a minha canção favorita do Djavan.
”Nem um dia” – Malásia (1996)
Tentei evitar as músicas mais famosas, mas ao mesmo tempo me perguntei: se ela é famosa, é porque é boa. O trabalho de Arthur Maia na faixa é aquilo que chamamos de fora da curva. Mesmo com tantos arranjos lindos e uma letra maravilhosa, sobra espaço para o baixo ter seu protagonismo. Seja com o solo da introdução, o groove gostoso dos versos e refrão, essa linha toda é nota dez.
A brincadeirinha harmônica aos 3:33 ilustra perfeitamente a ideia do que é ser um mestre do instrumento e saber quando é a hora de aparecer. Aliás, esse vídeo ao vivo tem uns solos de guitarra arrepiantes do João Castilho.
”Cair em Si” – Milagreiro (2001)
Serginho Carvalho é o cara responsável pelo som fretless lindo de “Cair em Si”. Para quem não está familiarizado, esse é o nome que se dá para um contrabaixo elétrico sem os trastes (as “casas” de marcação de cada nota do instrumento). É uma forma de aproximar o instrumento elétrico do som do baixo acústico.
A faixa, certamente outra joia subestimada da discografia de Djavan, tem uma levada magnética, que é quase como um mantra com suas repetições.
”Açaí” – Luz (1982)
Em “Sina”, o baixista Abraham Laboriel (pai do baterista monstro Abe Laboriel Jr, que faz parte da banda de Paul McCartney) fica quietinho. “Marcando” com classe, se é que posso cometer o sacrilégio de falar que ele “marcou” uma canção. Fazendo o que a música pede… Parecia que estava guardando para seu solo de introdução em “Açaí”.
Enquanto Djavan solta a voz nos versos, o baixo está lá no fundo criando frases lindas. O primeiro refrão, com um slap filho único, é o tipo de coisa que deixa a gente alucinado com um baixo. É um instrumento discreto, mas que consegue atrair a atenção facilmente. Especialmente quando falamos de um instrumentista competente.
”Oceano” – Djavan (1989)
“Oceano” não é apenas uma das canções mais famosas da discografia de Djavan, mas também tem mais um trabalho inspirado de Arthur Maia e João Baptista, e a participação do lendário Paco de Lucia fazendo o violão solo. Lembro um pouco do trabalho em “Nem um dia”, mas o baixo acústico (ou fretless) tem frases que remetem ao barulho das ondas do mar.
Curiosidade: enquanto pesquisava, descobri que o Tim Maia regravou “Oceano” em uma releitura soul romântica linda.
”Tem Boi na Linha” – Alumbramento (1980)
A primeira faixa do disco Alumbramento, de 1980, é um samba gostoso conduzido pelo baixo do Sizão Machado. Sabe quando a gente fala que o baixo é o instrumento que faz as pessoas dançarem? Acho que essa canção ajuda a entender o motivo. Inclusive, “Tem Boi na Linha” faz a gente lembrar imediatamente do swing inconfundível da Black Rio.
”Asa” – Meu Lado (1986)
Bicho… Sabe aquele ditado: “não sei o que dizer, só sentir”? Provavelmente usei ele em vão anteriormente, mas desta vez (juro) que é a versão definitiva. Em 1990, em uma gravação do programa Sunday Night Music, da NBC, o Djavan se apresentou ao lado de lendas como David Sanborn, Omar Hakim, Hiram Bullock, Don Alias e Marcus Miller.
Essa gravação é uma aula sobre música, no sentido de, não importa o quanto você seja excelente com o seu instrumento, ele nunca será mais importante que a música. Cada um dos instrumentistas demonstra maturidade elevada para só aparecer no momento certo. Meu irmão, quando eles decidem aparecer, vou te dizer que dá até para ouvir o baixo.