A música, assim como outras expressões artísticas, é uma forma de resistência. Prova viva disso é a Matte! Records, gravadora criada esse ano por Vinícius Flausino e Leonardo Soldá.
Eu estaria errado se falasse que esse é mais um projeto de música independente no país. Ele é mais do que isso: estamos falando da primeira gravadora focada em músicas comerciais feitas por artistas indígenas.
O objetivo com isso é claro: oferecer um espaço para que os povos indígenas se expressem, uma vez que a própria sociedade como um todo dificilmente os escuta.
A produtora acabou de lançar o primeiro material, o single “Resistência Nativa”, de autoria dos rappers Kunumi MC, Oz Guarani (duo formado por Xondaro e Mirindju) e o Brô MC’s (grupo composto por Bruno Veron, Clemerson Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto). Os artistas rimam sobre a sua realidade e revelam o genocídio que ainda persiste contra esses povos. Aliás, a canção é ótima, e oferece uma nova perspectiva para o hip-hop nacional.
Por isso, eu bati um papo com o Vinícius e o Leonardo, criadores da Matte!, e perguntei como esse projeto nasceu, os motivos que levaram a sua criação, como ocorre o contato com os artistas e as perspectivas para o futuro.
A gravadora foi formada por vocês esse ano, ou seja, é um projeto bastante recente. O que despertou essa ideia de formar uma gravadora de artistas indígenas?
Tudo começou a partir do nosso TCC do curso de Rádio e TV, onde resolvemos fazer um documentário sobre os indígenas. Devido a experiências anteriores, nós já tínhamos contato com alguns Guarani e também outras etnias de outros estados. Por estar mais próximo de nós, contatamos o Kunumi MC, que convidou os Oz Guarani e os Brô MC’s, que são uma referência para o Kunumi.
Juntos fizemos esse documentário sobre o rap nativo e a cultura Guarani. E foi durante a produção que produzimos uma música com videoclipe, que envolveu os mesmos artistas. Criamos o clipe, mandamos a música finalizada para o Alwin Monteiro, que fez a masterização. O Alwin e a equipe dele nos direcionou em relação ao lançamento e como funcionava a parte do business, para que o lançamento fosse feito de forma profissional e com qualidade. Lançamos a música com videoclipe no dia 28 de maio.
Muito mais do que um TCC, o projeto funciona como um protesto, para que a mensagem dos indígenas chegue ao maior número de pessoas. Até por isso, o Alwin nos ajudou com seu direcionamento, para o compartilhamento dessa mensagem, trazendo toda a equipe dele pra trabalhar com a gente.
Em um momento onde o reacionarismo e a extrema-direita crescem no mundo todo, eu vejo o trabalho da Matte como algo fundamental para ajudar a lutar contra essa onda. Como a gravadora enxerga o seu papel nesse sentido?
Nós sabemos que a onda da extrema-direita atinge vários grupos e minorias, e entre elas estão os indígenas. Cada grupo desse é formado por pessoas que têm alguma especialidade para somar como algum tipo de arma para essas lutas.
Nós estamos envolvidos com a luta indígena, e usamos como arma o audiovisual, para aumentar o volume da mensagem dos indígenas. É nesse ato que ajudamos a denunciar, isso é, estamos ajudando a mostrar a denúncia dos indígenas para o mundo. Somos mais um grupo entre tantos que atuam na luta dos povos originários, e o nosso papel é contribuir com essa luta através da arte.
Como vocês tem enxergado a recepção do público para o projeto?
Amor e ódio. Recebemos muitos feedbacks positivos, de pessoas indígenas e não-indígenas. Muitas pessoas elogiam o projeto, a gravadora e os MCs. Elas estão ouvindo a música, assistindo o videoclipe, e nós estamos muito felizes com isso. Porém, recebemos também muitos comentários preconceituosos, vindos da extrema-direita ou de pessoas que simplesmente não conhecem a necessidade dos indígenas.
Elas não aceitam ver indígenas usando um celular, carro, roupa de determinada marca ou até mesmo o fato deles fazerem rap. Sabemos que muitos brasileiros não tem noção de como é a vida de um indígena nos dias de hoje, com um conhecimento restrito ao que é ensinado nas escolas.
Entretanto, com a tecnologia e a expansão das redes, essa visibilidade é maior. Por esse motivo, muitas pessoas admiram o projeto e o acham revolucionário, no sentido de ver um indígena utilizando uma ferramenta não-indígena para passar a sua mensagem.
Nesse sentido, outras pessoas se limitaram a criticar, dizendo que o rap não foi feito para indígenas, ou questionando o fato deles terem redes sociais, usarem roupas, andarem de carro, etc.
Mas uma coisa importante a se dizer é que todo esse público, seja falando bem ou falando mal é o público-alvo do nosso projeto. Como o nosso objetivo é mostrar como os indígenas vivem nos dias de hoje e qual a situação da sua causa, é interessante alcançar essa massa.
Sobre a faixa “Resistência Nativa”, eu quero saber como foi reunir o Kunumi MC e os grupos Brô MC’s e OZ Guarani. Como foi feito esse contato?
Pra reunirmos essa galera, nós começamos bem antes, devido a um projeto que já participávamos antes, o coletivo Cultura Viva, que trabalha pela causa indígena. Fomos contemplados no edital do “Fomento a Cultura da Periferia”. Por isso, nós já tínhamos esse contato com o rapper e os grupos para participar do festival que ajudamos a organizar, e que também reunia palestrantes e outros participantes indígenas. Assim, entramos em contato com o Kunumi MC para o nosso documentário.
Na verdade, nós já tínhamos uma certa intimidade com ele e a família, indo na aldeia, trocando uma ideia e ouvindo suas histórias, até para saber pelo que eles passavam. Conversamos e veio da ideia do próprio Kunumi MC a ideia de chamar o Brô MC’s, já que eles são a principal referência do Kunumi fazer rap. Ele também convidou o Oz Guarani, pois o Kunumi conviveu por um tempo com eles na mesma aldeia, na região do Pico do Jaraguá (São Paulo-SP). Daí surgiu a união dos três grupos.
Houve um desafio que foi captar as vozes, uma vez que o ideal é fazer isso no estúdio. No caso do Kunumi MC e do OZ Guarani, como já estávamos em época de pandemia, resolvemos “levar o estúdio até a aldeia”, tomando todas as precauções para fazer a captação. Já em relação ao Brô MC’s, isso foi mais complicado pois eles vivem no Mato Grosso, e não era possível nem os gravar para o vídeo e nem fazer essa captação. Porém, com a ajuda do produtor do grupo, Igor Lobo, ele levou o grupo até o seu estúdio, e fez essa captação, além de também ter feito uma gravação para montarmos o vídeo clipe.
Quais são os futuros planos da gravadora?
Nossos antepassados fizeram muito mal aos povos originários, e nada que fizermos vai mudar o que aconteceu. Porém, melhor do que não fazer nada, é tentar fazer alguma coisa. Precisamos lembrar que essas terras não foram descobertas, mas invadidas. Então, queremos continuar ajudando, propagando essa mensagem e utilizando nossas ferramentas, com o audiovisual de uma forma geral. “Resistência Nativa” é apenas parte desse projeto, e em breve teremos mais novidades. No momento, o que podemos falar é que continuaremos trabalhando à favor da causa indígena.