No dia 6 de dezembro o Pete Shelley, vocalista, guitarrista e fundador da banda punk Buzzcocks, morreu de ataque cardíaco. Ele tinha 63 anos e morava na Estônia. E isso abalou muita gente, inclusive eu. Vou te explicar por quê. Eu tenho uma mania de encasquetar com as músicas que eu gosto e ficar ouvindo elas mil vezes seguidas, no repeat por dias, prestando atenção a novos detalhes a cada audição, decorando a letra e a progressão de acordes…coisa de nerd e musicista. Semana passada, por coincidência, eu tinha feito isso com “Ever Fallen In Love”, a música mais famosa dos Buzzcocks, que foi lançada em 1978. E eu tava tão obcecada que cheguei ao nível de cantar junto no ônibus e na rua, daquele jeito que as pessoas em volta te olham estranho. Pois bem. Dias depois, descubro que o Pete morreu. Eu fiquei arrasada.
O Buzzcocks foi uma banda seminal, deixou um legado que marcou a história da música e influenciou gerações, de Hüsker Dü a Nirvana. O grupo foi formado em 1975 na cidade de Bolton, que fica ao norte de Manchester, na Inglaterra (daí vem o forte sotaque britânico nortista de Pete, aliás, que dava o maior charme para as músicas). Eles entraram na onda punk, mas de um jeito diferente, muito deles, com muita personalidade. Desde aquele tempo eles são muito comparados aos Sex Pistols, porque começaram sua carreira abrindo os shows deles e os londrinos seriam uma grande inspiração, mas na verdade as duas bandas são muito diferentes. O Sex Pistols (não me leve a mal, eu também amo) era uma banda propositalmente tosca, violenta, afrontosa, que foi formada por um empresário. Era praticamente uma boy band do avesso, cuspiam no palco, quebravam tudo, acabavam os shows sangrando. Enquanto isso, o Buzzcocks eram amigos que já tocavam juntos, tinham músicas mais elaboradas e eram extremamente emotivos, falando de amor não correspondido, angústia adolescente, sentimento de não pertencer a ninguém e nem a lugar algum. Tinham um apelo pop e eram bons moços, digamos assim. Mesmo seu visual era bem mais comportado. E foi justamente por isso que eles marcaram tanto…Pete cantava sobre emoções universais, que todo mundo já sentiu um dia, principalmente quando jovem. O jeitão deles, apesar de não ser agressivo como os Pistols, ainda era de espírito livre, independente e combativo, encaixando perfeitamente no movimento punk que ajudaram a construir.
E o Buzzcocks foi revolucionário por questionar convenções sociais, caretice e moralismo, principalmente se tratando de sexualidade. As canções falavam muito mesmo sobre amor, mas de forma neutra e respeitando gêneros (um oásis sem machismo em uma época em que as mulheres ainda eram muito objetificadas). Eles chamavam “Buzzcocks”, que não tem sentido literal mas era uma gíria para vibrador (é a junção das palavras “buzz” – elétrico, vibrante – e “cock” – pênis). Também tinham uma música chamada “Orgasm Adict” – viciado em orgasmo. E isso tudo tinha motivo: Pete Shelley, que foi o principal compositor da banda, era bissexual assumido. Se hoje em dia sexualidade e orientação sexual ainda são grandes tabus, imagina como era nos anos 70. Ele era um cara mega sensato e sensível, à frente do seu tempo. “Ever Fallen In Love”, que até hoje é o maior hit da banda, foi inclusive escrita por Pete para um homem, Francis, com quem ele se relacionou por sete anos, mas que no começo não retribuía o interesse e não estava nem aí para as investidas do pobre cantor (poxa, crush, por que não me nota?!).
Uma vez, Pete disse o seguinte para a revista inglesa NME:
“Eu tento manter as letras neutras, ambi sexuais. Eu gosto de escrever músicas que não excluam ninguém. As únicas pessoas que minhas canções excluem são aquelas que não sabem nada sobre o amor”.
Já pode chorar, produção?
Os Buzzcocks mostraram que os punks também amam e que música punk não precisa necessariamente ser tosca e agressiva a todo momento, abrindo um mar de possibilidades criativas e expressão e trazendo o movimento para mais perto das pessoas, com uma grande identificação. Os caras ainda por cima eram boa gente e ajudaram muitas outras bandas – o Joy Division, por exemplo, provavelmente jamais teria ido pra frente se não fosse por eles. O primeiro show da banda foi abrindo para o Buzzcocks. O baixista Peter Hook, que depois fundou o New Order e é famoso até hoje, contou no seu Twitter que, se não fosse por Pete Shelley, estaria até hoje trabalhando nas docas do congelante litoral inglês. “Shelley era um verdadeiro cavalheiro, nos ajudou demais no começo da nossa carreira por puro amor à música e tudo que fosse punk”, disse Hook. Aqui aliás cabe uma observação apenas a caráter de curiosidade: essa região da Inglaterra de onde eles todos vêm, no noroeste entre Liverpool e Manchester, já rendeu muita coisa boa na música, de Beatles e Oasis a Smiths, Stone Roses, Chemical Brothers, Echo & the Bunnymen, The Wombats e mais um monte de gente. Vai saber o que tem na água lá.
Além de toda essa história e da sua importância para a música e o rock, a morte de Pete Shelley também é muito triste porque ele seguia em plena atividade desde a volta do Buzzcocks, em 1989. A banda ia relançar seus dois primeiros discos em vinil remasterizado no começo de 2019, comemorando seus 40 anos de carreira. Eles também iam participar do cruzeiro do Belle and Sebastian em agosto, junto com Mogwai, Camera Obscura e mais outras bandas. Tinham vários shows marcados durante todo o ano que vem e em junho iam tocar no Royal Albert Hall, o mais famoso e importante espaço de espetáculos do Reino Unido. Nos últimos três anos, o Buzzcocks excursionou pela Europa e pela América do Norte e, no começo de agosto de 2018, tocaram no Rebellion Festival, em Blackpool, que é o maior festival punk que existe hoje em dia. Eles ainda estavam compondo músicas novas e seguiam criando, mesmo com 60 anos nas costas. Olha como estavam bem:
O que me consola é saber que Shelley deixou sua marca no mundo, teve uma vida plena e feliz e nunca será esquecido. Um cara visionário, vanguardista, que desde o século passado já entendia a importância da igualdade e sabia que machismo, homofobia e todo tipo de preconceito não estavam com nada e não mereciam espaço. Uma pessoa que sabia que uma banda ajudando a outra acabava fortalecendo todo mundo junto e valorizando a música, um homem apaixonado por punk que dedicou sua vida à arte e ao movimento.
Descanse em paz, Pete, e obrigada por tudo.
Num domingo à tarde ouvindo The Buzzcocks, me deparo com esse texto tão verdadeiro e delicado. Obrigada!
Sinceramente, nunca vi nada disso na música dos Buzzcocks. Pesquisei no Google e o nome da banda não tem conotação sexual alguma. Buzzcocks como todo o resto é só entretenimento. A militância só existe na cabeça de jornalista tendencioso.