Da última vez que entrevistamos Larissa Conforto, ela havia acabado de começar o projeto ÀIYÉ, tinha lançado Gratitrevas, seu primeiro trabalho solo, e estava enfrentando a pandemia em São Paulo, isolada depois de cancelar a turnê de divulgação do trabalho.
Três anos depois, ÀIYÉ está no Primavera Sound São Paulo 2023 como uma das artistas brasileiras que se apresenta na segunda edição do festival. O convite veio depois dela ter lançado TRANSES, seu segundo trabalho, no começo do ano, e representa um passo importante para artistas independentes brasileiros.
Conversamos com Larissa, que dá voz e corpo ao projeto ÀYIÉ, sobre esse convite, sua nova fase e seu novo disco, religião e seu amor por Marisa Monte!
ÀIYÉ no Primavera Sound 2023: do convite para o festival até o amor por Spice Girls
Apesar de já ter assistido algumas edições do Primavera Sound e ter, inclusive, feito um show de abertura para Mitski, um dos nomes que fez parte do line-up da primeira edição do Primavera Sound São Paulo, é a primeira vez de ÀIYÉ no Primavera Sound como artista.
A cantora, multi-instrumentista e artista toca no sábado, dia 02, às 12h30 no Palco Barcelona, e promete participações especiais no visual de seu show.
Primeiro de tudo, como surgiu o convite pra tocar no Primavera Sound?
Foi através da Balaclava. Eu tava no Chile, tava lançando meu disco e em maio, que eu estava na primeira turnê, o Farah me ligou dizendo que eles tinham feito convite. Eu suspeito, que tenha a ver com o fato de eu ter tocado no Primavera na Cidade, lá no Rio, abrindo pra Mitski, e foi muito legal o show. Eu tô muito feliz! Eu só chorei, desde então.
Eu vou te contar um segredo: eu já fui a dois Primavera Sound, lá na Espanha. É um festival que eu amo desde sempre, que eu vi bandas absurdas, assim, que são tipo minhas referências, sabe? Tipo, Sevdaliza, FKA Twigs, The Internet… Eu vi todos eles no Primavera.
E desde que eu comecei a fazer a ÀIYÉ, eu medito. Todas as minhas meditações eu projeto na minha cabeça eu tocando naquele palco que eu vi a Sevdaliza, FKA Twigs, The Internet. Exatamente aquele palco. Então, tipo, quando chegou o convite, óbvio, né? É uma honra gigantesca. De alguma forma, eu sei que tem a ver com as minhas meditações. Eu acho que eu só… Eu chamei essa energia.
Eu sei que eu vou tocar super cedo, mas eu acho que cada passinho, assim, pra gente que é independente é muito importante. E eu gosto muito da curadoria do Primavera, então me sinto muito honrada, sabe? De estar na segunda edição no Brasil… Tipo, muito feliz.
Quais artistas você tá ansiosa pra ver no Primavera Sound esse ano?
Marisa Monte, que eu amo e nunca pude ver. Quero tentar ver o The Cure, que não é no mesmo dia que eu toco. Mateus Fazeno Rock também, é muito bacana. O The Killers eu já vi, também não é uma banda que eu curto tanto.
Aproveitando o assunto Marisa Monte, como o trabalho dela te influenciou a fazer a sua música?
Muito. Absolutamente tudo. 100% tudo. A Marisa é a referência maior. Assim, que louco, né? É tipo Clara Nunes e Marisa, que veio uma geração depois. Primeiro que ela também é da Portela, assim como a Clara Nunes, e canta sambas que marcaram a minha vida. Cresci ouvindo.
Segundo que uma das primeiras músicas que eu cantei na minha vida inteira foi Amor, I Love You.
Eu me inscrevia pro Gente Inocente, sabe? Aquele programa de criança cantando no chuveiro, que o pai ficava no chuveiro e a criança cantava no karaokê? Gente, era meu sonho… Eu acho que eu fiz umas 80 inscrições na Globo pra cantar Amor, I Love You no Gente Inocente.
Eu amava. Sempre amei e amo. E amo o trabalho dela. Amo todos os discos. Tipo, é uma coisa de criança mesmo, até agora. Pra além disso, é uma mulher carioca que canta grandes clássicos de samba com grandes compositores, mas também é compositora e canta muito sobre axé, né? Sobre orixá também. Então, tipo… Me identifico muito.
O Primavera é um dos festivais que tem se esforçado para trabalhar a equidade de gênero no line-up. Esse ano, também, a gente teve o Rock the Mountain, que teve apenas mulheres no line-up. Eu queria entender como você vê essa movimentação no cenário da música pra finalmente incluir nós, mulheres, e até mesmo pessoas não binárias, artistas trans, nos festivais e nos shows. E o que você ainda acha que falta fazer pra ter essa inclusão mais ampla?
Eu não fui no Primavera do ano passado, porque eu tava no Rio, no Rock the Mountain, tocando. E eu achei muito linda a decisão do Rock the Mountain fazer isso.
Eu acho que a gente tem que parar de achar que não é uma questão de gênero, sabe? Achar que só colocar cotas resolve. Tudo é questão de gênero, tudo é diferente pra gente. Ainda mais a música, o meio artístico. Ainda somos mulheres que cantam e que ocupam um papel de música, um papel que é específico na sociedade como um todo, né? Na indústria da música, em sua maioria, a mulher é vocalista e a banda são homens. Por que a importância da gente entender a hegemonia do gênero masculino? Até, por exemplo, dentro do meio LGBT, que o G, ele tem um destaque absoluto e mantém uma misoginia que, hoje em dia, a gente precisa questionar, sabe?
Mas, é isso. O mundo não é feito pra gente. E aí, eu que sou artista há mais de 20 anos, que tô fazendo turnê e que vivo de fazer show, eu fico menstruada e não tenho onde ir. Porque o banheiro de uma casa de show não é apropriado pra mulheres, entende? Não tem muito o que ser feito porque a gente não consegue ter saúde física nem mental para exercer nosso trabalho, né?
Você vai tocar e não tem um espaço pra mulher, sabe? Pra higiene da mulher. Não tem um espaço que garanta o mínimo. Porque a sociedade simplesmente não considera que metade da população sangra todo mês. Isso ainda é um estranhamento. Isso ainda é uma coisa nojenta. Isso ainda é uma coisa esquisita, que a gente não pode falar.
É muito importante que a gente possa pensar na base, porque a gente não tá tendo básico. Uma mulher artista não consegue pensar em ter filho. A não ser que ela seja muito grande e tenha uma carreira muito consolidada ou que ela tenha um outro trabalho que ela possa ficar de licença e recebendo salário, sabe?
Então, assim, a saúde mental e física da mulher… Quer dizer, não tem nem 50 anos que a gente ganhou o direito de votar e de participar da sociedade. Não tem nem dois anos que a ciência começou a estudar o corpo da mulher.
É muito importante ter representatividade. Falo sempre porque Spice Girls foi o que me fez entender que eu poderia ter uma banda e poderia viver de música; ver uma banda só de mulheres e me reconhecer nelas. Mas, ainda assim, são mulheres inglesas com seus privilégios e tudo mais, sabe? Aqui, o empoderamento é a sexualização do nosso corpo e é muito necessário que a gente tenha outros exemplos de mulher, né? Não só as mulheres cis e brancas, como eu sou, mas que tenha outros corpos, que tenha outras vivências, que tenha outros discursos, né? Que a gente comece a pensar em condições de trabalho dignas dentro do mercado da música, sabe? Porque realmente é assim.
Ultimamente rolou um debate muito sobre a religião versus ciência. E aí o normal é a gente ficar do lado da ciência, embora eu seja uma pessoa religiosa, tá? Macumbeira, mas religiosa. Só que a ciência é branca, hétero, homem cis, europeia, entende? A gente tem confiado demais numa ciência que repete que repete um esquema colonial, um esquema branco, eurocentrado, homem cis, né? Então, assim, super machista, extremamente patriarcalista e capitalista. É importante que a gente comece a questionar algumas soluções científicas ou algumas decisões globais, sabe? Não são só as religiões que são controladas por boys brancos. É tudo, basicamente. Basicamente tudo. Não estamos livres. Salve-se quem puder.
O TRANSES saiu agora em abril e é o seu segundo trabalho solo. Eu queria saber um pouquinho mais sobre quais foram as suas inspirações pra compor tanto sonora quanto liricamente.
Totalmente. Tudo. TRANSES é um disco que eu fiz pra não me levar a sério. Assim, no melhor sentido da palavra.
Tipo, eu me preocupei demais no período pandêmico. Me preocupei demais com o que também pensariam de mim como uma pessoa que saiu da bateria e foi cantar. E eu quis fazer uma coisa muito experimental e diferentona e o TRANSES era assim, cara, eu só quero botar as coisas que estão rolando pra fora. Eu só vou brincar e me divertir. E se sai um disco, ótimo; se não sair, vai sair um single, sabe?
Então, foi também um disco que foi encomendado por Iemanjá. Ela me me deu um ultimato em um momento. É um disco que deságua as minhas experiências em terreiro, né? Que já é quase uma década tocando atabaque na Umbanda. E, em um momento, eu comecei a compor pras entidades, pros orixás. E aí eu não queria colocar isso no meu projeto porque não sei se eu queria esse lugar de fala. Achava que não era o meu lugar até que eu recebi esse chamado espiritual dizendo “gata, a senhora, se a senhora não fizer isso agora, a senhora vai fazer na próxima vida. Você não quer começar logo?”. Tipo assim, tem que fazer e tem que fazer e pronto, acabou. Engula teu orgulho.
E aí, fui eu praticar a minha humildade, perceber o que é que eu posso oferecer e aí entender que não é muito sobre mim, é sobre eles, é sobre o que tem que ser dito e é sobre o que tem que ser passado pra frente. Não é sobre eu reivindicar um lugar, né? É um processo de colocar pra fora, tudo que é importante pra mim. Então, eu falei do Saci, falei de mamãe Oxum, falei de Pai Ogum, falei, né?
O nome TRANSES tem a ver com transitar na encruzilhada, né? Essa encruzilhada que é um ponto onde tudo se cruza, uma chave que abre todas as portas. Um lugar, um caminho que dá pra todos, sabe? Pra mim, é esse o lugar onde o Exu mora e é esse o lugar que eu quis trazer até com a ideia da internet, assim, várias janelas abertas, né? Então, é isso. Cada música é um ritmo, vai pra um mundo, como se cada… Como se eu estivesse andando naquele corredor do clipe da Beyoncé, do Haunted, e aí abrindo uma portinha e cada portinha é uma música entrando num mundo, sabe? Pra mim, é isso.
As referências vão desde Paulinho da Viola, Clara Nunes e Marisa Monte até Sevdaliza, FKA Twigs, Rosalía… Tipo, tem muita coisa de pesquisa minha, né? Porque como baterista e percussionista sempre pesquisei ritmos latino-americanos, então é um pouco misturar os ritmos. Tem ritmo peruano, tem ritmo argentino, tem ritmo chileno, e aí mistura um pouco com os ritmos brasileiros, com os ritmos de terreiro com beat, essa coisa de encontro de mundos, de entre coisas, assim. Fiquei com muito medo porque achei que ninguém entendia nada, ainda bem que alguém entendeu alguma coisa.
Por outro lado, saí de um lugar que eu era vista como apenas a rockista, né? Quis mostrar outras coisas que eu sempre tive consumindo, mas nunca também tive a oportunidade de colocar. É isso.
Eu ia perguntar sobre a capa, mas você já falou sobre ela. A ideia foi justamente esse lance de abrir portas e janelas, né?
Eu piro muito numa estética que chama pós-internet. Tem alguns artistas que trabalham com isso, inclusive. Enfim, eu já tinha usado essa estética num clipe anterior, que é o Mito e a Caverna, do primeiro disco, que é uma pesquisa de internet e tal.
A ÀYIÉ nasceu numa temporada que eu fiz no Centro da Terra, num teatro em São Paulo, que o Alexandre Matias me convidou pra fazer. Eram quatro segundas-feiras e eu fazia performances. Chamou ÀIYÉ o nome da temporada, mas eu não sabia que viria uma banda. Eu tava muito na coisa de artes performáticas. E aí a performance era essa. Eu abria a internet e começava a digitar coisas e abria janelas. E aí eu ia fazendo uma performance em cima disso e tal e depois tinham músicos convidados pra gente tocar em cima. Então aí nasceu a ÀIYÉ, nasceu nesse lugar de pesquisa, performance e desvendando formas de internetializar a arte e colocar a arte na internet, sabe? Tipo, como é que eu vou usar essa estética da internet, assim? E aí foi isso.
Eu piro muito nessa estética e já tinha essas referências, assim. E acho que a coisa da encruzilhada de Exu, esse lugar onde tudo se cruza, pra mim a internet é uma versão virtual disso, de encruzilhada, sabe? É onde vários mundos se encontram numa coisa invisível, né? Virtual, invisível. E a forma da gente ver ela é na telinha com várias telas abertas, e janelas, e mundos. Então é meio isso, assim. Foi um processo.
Tipo, o disco, a capa do disco tem várias capas dentro dele, porque eu tentei fazer capas com pessoas variadas. Então um amigo pintou um quadro meu, que ia ser a capa. Aí um outro amigo fez, que é o Valada, também maravilhoso, que é da Viratempo. Ele fez também uma arte com vários símbolos e tal. E eu assim, não, ainda não é isso, ainda não é isso, ainda não é isso. Aí juntei todas as artes numa capa, sabe? É, cada um faz sua parte e depois junta mais. Deu certo dessa vez, porque ficou bonito. É sobre isso: um trabalho em grupo, que rolou.
Qual sua música favorita do TRANSES?
Ai, meu Deus. É difícil falar de um filho só. Eu já tive fases. Eu acho que agora a minha música favorita é Oração. Ela chamava Coração, aí quando veio o feat virou Oração.
Qual a música mais difícil de escrever?
Acho que foi Ori, porque ela veio em Yorubá.
Ela veio num sonho, em Yorubá. Eu falei “meu Deus, o que é isso? O que é que eu tô dizendo?”. Aí eu fui lá no terreiro e falei “me traduz isso”. Acho que foi Ori por causa disso.
Mas se fosse, tipo, a mais difícil emocionalmente, assim, acho que foi Bad Omen, que é outra em inglês, né? Ela é sobre xenofobia. Quando eu morei lá na Europa, eu tinha que falar inglês, porque se eu falasse português, tipo, eu era tratada como uma barata.
Qual é a música que você mais está ansiosa pra tocar no Primavera Sound?
Acho que Exu.
O que a gente pode esperar do show de ÀYIÉ no Primavera Sound?
Tem surpresas! Claro, eu vou fazer um show de dia, então não tem muita coisa muita pirotecnia, mas vai ter um um telão muito foda feito pela biarritzzz, que é uma artista incrível que também trabalha com essa linha, né, com pós-internet e tal. A cenografia é foda.
Pode esperar surpresinhas, pode esperar gravão batendo no peito… E é isso.
Acho que rolou uma coisa que, assim, vetaram participação no show. Aí eu falei, “Ah, bom, se eu não posso levar participação musical, então eu vou levar participação visual”. Então, eu tô levando artistas visuais na cenografia, sem mais spoiler. Mas, eu tô levando participações, tô levando um monte de artista pro palco.
Serviço: Primavera Sound São Paulo
Data: 02 e 03 de dezembro de 2023
Local: Autódromo de Interlagos | Avenida Senador Teotônio Vilela, 261, Cidade Dutra, São Paulo, SP
Classificação: 10 anos
Ingressos custam entre R$495 e R$2.980 e podem ser adquiridos no site da Tickets for Fun.
Horários dos shows: