Quem poderia imaginar que, enquanto a história da música brasileira escrevia um novo capítulo no Festival Viva Brasil, o público presente também presenciaria outro fato histórico? Com um calor de 37 graus, uma das maiores temperaturas já registradas na capital mineira, o público se refrescava como dava para não perder nenhum momento da programação do evento.
Registramos o quanto esse encontro era promissor e gerava imensa expectativa, mas a verdade é que só vivendo para entender a dimensão da chance de ver (pela primeira vez, no meu caso) Gilberto Gil, Maria Bethânia e Jorge Ben Jor no mesmo dia. Que me perdoem os Gilsons, Lagum, Iza e o Natiruts, mas eles certamente entendem bem o que é esse sentimento e sabem que também viveram momentos especiais em suas carreiras.
A primeira edição aconteceu no Mirante Olhos d’Água, um espaço interessante para a realização de eventos, mas um pesadelo para ir embora. Não chega a ser, obviamente, traumatizante como tentar voltar para casa após sair do Mineirão. Só quem já ficou mais de duas horas tentando pegar um UBER entende isso. A estrutura do festival dividiu o público em três áreas distintas: pista, pista premium e uma área vip com open bar. Um grande acerto do evento foi preparar uma estrutura coberta para “cuidar” do público. Praticamente como se estivessem adivinhando o Clima Tempo, a produção se antecipou para prevenir um problema maior de desidratação.
Aliás, precisamos lembrar que as redes sociais foram muito maldosas com o evento desde seu anúncio. Suspeitas de “fraude” ou de risco das atrações cancelarem foram assuntos debatidos nas postagens. Felizmente, deu tudo certo e só podemos lamentar o ambiente tóxico das redes sociais, muito por causa de um caótico festival que havia acontecido no Rio de Janeiro próximo da época do anúncio do Viva Brasil. Poderia ser cilada, mas não foi. E que bom.
Ainda assim, claro, não dá para ignorar que a produção tomou decisões bem questionáveis, confiando naqueles que compraram seus ingressos de uma forma um pouco exagerada, considerando que estamos falando de pessoas em um evento com bebidas. Por exemplo, a cerveja estava disponível em garrafas de vidro. Muita gente entrou com cadeiras de praia. A revista das mochilas não passou de uma olhadinha de leve. Outro fator negativo, causado pelo calor ou não, foi a retirada das latas de lixo da pista. No final do evento, o chão era o próprio cenário da uma continuação do premiado documentário Lixo Extraordinário.
Os shows do Viva Brasil
A primeira atração subiu ao palco com 30 minutos de atraso em relação à programação original (e vale dizer que esse atraso parece ter sido programado, já que não interferiu os horários de Maria Bethânia e Jorge Ben Jor, que entrou 10 minutos antes, inclusive). Os Gilsons chegaram com suas canções, convidaram o Lagum para uma participação especial e foram aumentando a expectativa para a entrada de Gilberto Gil. Quando, finalmente, Gil surgiu, ele foi ovacionado com uma intensidade que presenciei poucas vezes. Gil logo puxou “A Novidade” e “Vamos Fugir” para ser acompanhado em alto e bom som, por pessoas novas (com pouca roupa, como observou o nosso ex-ministro da cultura), velhas e intermediárias (como é meu caso). Uma pena que tenha sido apenas uma participação especial e não um show inteiro, mas tá valendo.
Na sequência, o Natiruts começou com seu reggae de primeira qualidade. O vocalista compartilhou algumas histórias, como o fato da banda ser vista como MPB e não reggae no exterior ou sobre a composição que fez durante um voo e precisou registrar deixando um recado na secretária eletrônica. Com um desfile de clássicos, os brasilienses não precisaram se esforçar para conquistar os mineiros, totalmente receptivos e cantando junto “Deixa o menino jogar”, “Liberdade para dentro da cabeça” (saudades, MTV), “Natiruts Reggae Power”, “Presente de um beija-flor”, dentre outras canções. Eu nem sabia que gostava tanto da banda. Foi bom descobrir.
Às 19h, com o sol escaldante saindo de cena, foi a vez de Maria Bethânia iniciar o seu show. Para boa parte do público, aquele era o ponto alto do evento. Inclusive, sei de várias pessoas que saíram de São Paulo ou Rio de Janeiro para conhecer o calor mineiro porque seria mais vantajoso financeiramente que tentar um lugar em shows nas suas cidades. Veja só o ponto que chegamos. Uma pessoa afirmou que, mesmo com a passagem de avião, ver a Maria Bethânia ao vivo em BH seria mais viável que em SP.
Existem vozes bonitas na história da MPB. Existem vozes lindas do restante da América, da África, Europa etc. Mas existe a voz da Maria Bethânia. Com uma dinâmica vocal que vai da leveza delicada até um potência arrepiante, a cantora emocionou o público, que se refrescaria com as próprias lágrimas, se elas não ficassem aquecidas tão rápido. Acompanhada de uma banda afiada, Bethânia desfilou com seu talento e simpatia em canções épicas como “Fera Ferida”, “Explode Coração”, “Reconvexo”, e uma releitura surreal de “Cálice”.
Faltaram músicas? Faltaram músicas. Como fã, a gente se sente no direito de “exigir” do artista que toque seu repertório inteiro. Mas é importante entender que quando se fala de uma artista com uma trajetória tão incrível quanto Maria Bethânia, até se ela decidisse fazer uma apresentação cantando Thiaguinho ou Belo, a gente ainda aplaudiria de pé. Porque ela é fora da curva e um verdadeiro presente para nossos ouvidos.
Detalhe curioso: enquanto a maioria das pessoas lamenta que nunca escuta o baixo nas músicas, Bethânia pediu várias vezes para a sua equipe técnica diminuir o instrumento. Imagino que o problema estava lá no retorno, o que atrapalha mesmo o trabalho de quem canta, mas é muito curioso pensar nessa situação. Tenho certeza que algumas pessoas ficaram de marcar consulta no otorrino para se certificar que a audição está em dia porque mesmo com a Bethânia pedindo para diminuir, elas ainda não conseguiam escutar o instrumento.
Após o show da Maria Bethânia, parte do público se dirigiu à saída do Mirante. Entendo quem tinha que correr para pegar o voo de volta para a sua cidade (e descobrir que o caminho até o aeroporto de Confins é mais demorado que a viagem de BH-SP, por exemplo), mas não entendo quem achou OK ir embora mais cedo. Como é que você sai de um evento, cuja última atração é ninguém menos que Jorge Ben Jor? É como pedir para desligar o baixo totalmente, sabe?
Com (inacreditáveis) 84 anos de idade, Ben Jor fez jus à sua música e chegou animando a festa. Perdoe se pareço repetitivo, mas a verdade é que a noite foi mesmo recheada de clássicos atrás de clássicos. O repertório de Jorge Ben Jor é assim. A ausência de quem antecipou a volta para casa e UBER com preço humano, foi boa porque criou espaço para o mineiro mostrar o samba no pé. Ou o mais próximo disso. Um verdadeiro gol de placa para dançar sem parar e ignorar que a segunda-feira estava bem ali, de olho nos assalariados curtindo a vida na véspera de começar uma nova semana.
“Quero Toda Noite” foi introduzida com um solo de baixo maravilhoso. Até Maria Bethânia pediria para aumentar o som. Além do swing e groove para cima, a banda também mostra versatilidade combinando momentos mais animados e dançantes, com um lado com andamento reduzido para deixar cada instrumento ter seu momento de atenção. Inclusive, destaque para os instrumentistas dos metais, outro verdadeiro arraso.
No final do show, já sem voz, Jorge se despediu agradecendo ao público pela noite. Se for possível ignorar que ele é uma lenda viva, devemos mesmo pensar no quanto deve ser especial saber que o rei não perde a sua majestade, independente do tempo. Assim como aconteceu com o repertório da apresentação perfeita de Maria Bethânia, também faltaram canções. Muitas canções. Mas o que importa, no final das contas?
Fora o calor, podemos dizer que o Viva Brasil atendeu as nossas expectativas e criou um dia inesquecível para os amantes da boa música, seja ela popular brasileira ou mundial. Fica a expectativa para novos encontros desse nível, o que não parece tão improvável. Afinal de contas, o que não faltam são lendas vivas da nossa música e que muita gente (ainda) não conhece.