Um dos festivais mais tradicionais finalmente desembarcou no Brasil: o Primavera Sound ocupou a cidade de São Paulo com shows espalhados pela capital e um fim de semana recheado de atrações no Distrito Anhembi.
Com um público de mais de cem mil pessoas em seus dois dias principais, o festival contou com semelhanças e diferenças quando comparado com outros eventos já conhecidos do público – como Lollapalooza e Rock In Rio, por exemplo – mas, no geral, passou pela estreia com um saldo positivo. Muito disso se deve aos shows de nomes como Arctic Monkeys, Björk, Lorde, Travis Scott e Charli XCX, as principais atrações das duas noites.
O público ainda teve à disposição as apresentações do Primavera na Cidade, que contou com nomes como Boogarins, Jup do Bairro e Ratos de Porão espalhados por três casas de shows em São Paulo: Audio, Cine Joia e Palácio das Convenções Anhembi.
Entre problemas e pontos positivos, acompanhamos o festival de perto e separamos alguns destaques que encheram – ou não – os nossos olhos.
O PRIMAVERA NA CIDADE
A primeira edição do Primavera Sound no Brasil contou também com o Primavera na Cidade, sequência de side shows que ocupou 3 palcos diferentes: no Cine Joia (Liberdade – centro), na Audio (Barra Funda – zona oeste) e no Palácio de Convenções do Anhembi (Santana – zona norte), com 8 datas e mais de 30 atrações. Entre os shows, havia os excelentes Tuyo, Brvnks, Gab Ferreira, Urias, Boogarins, Jup do Bairro, Céu e Juçara Marçal.
Todo mundo que tinha comprado o passaporte para os dois dias do Primavera Sound podia pegar de graça ingressos para os shows paralelos do Primavera na Cidade, que também eram vendidos de forma avulsa. O Audiograma esteve presente na Audio na noite do dia 3 de novembro, quinta-feira, para ver os shows de Molho Negro, Black Pantera, Crypta, Ratos de Porão e Dead Fish – o puro creme do rock contemporâneo brasileiro que faz bonito ao vivo.
A noite começou com o Molho Negro, power trio que vem de Belém do Pará e que faz um show muito intenso e barulhento, com distorção estralando e bateria pesada. Lembra bastante o que eram os shows do Nirvana nos anos 90, com os integrantes jogando seus instrumentos pelo palco e até na plateia em uma performance visceral. O auge da apresentação foi quando o vocalista e guitarrista João Lemos deu a sua guitarra para um cara xis da plateia, que fez bonito tocando junto com a banda e causou alvoroço. Também não faltaram incentivos para que o público abrisse rodas de bate cabeça.
Em seguida, foi a hora do Black Pantera, outro power trio, que vem de Uberaba, Minas Gerais. Apesar de terem 3 álbuns lançados e estarem em atividade desde 2014, foi só de 2021 pra cá que a banda parece ter realmente estourado – e os caras merecem de fato todo o reconhecimento. Em 2022 eles tocaram no Rock in Rio, começaram a ganhar mais espaço na mídia e lançaram um excelente álbum, Ascensão. O melhor show da noite foi o deles, cheio de energia, simpatia, muito peso e um som incrível que surpreende.
Os três chamam a atenção pelo virtuosismo em seus instrumentos, principalmente o baixista Chaene da Gama. Mas não é nem de longe aquela exibição que cansa a plateia – pelo contrário, o Black Pantera encanta a todos criando quase uma hipnose coletiva. É uma energia muito boa, eles conversam bastante com o público entre as canções e levantam demais a galera. O guitarrista Charles Gama (que é irmão do Chaene e, com todo o respeito, é o homem mais bonito do Brasil) se jogou na plateia mais de uma vez e conseguiu continuar cantando e tocando sem sequer perder o tempo, e o baterista Rodrigo Augusto, o Pancho, fez o show sem máscara (foi a primeira vez que eu o vi tocar assim, mostrando o rosto) e foi apenas impecável. Todo mundo cantou junto, se emocionou junto e ficou feliz.
Depois entraram as meninas da Crypta. Quem não conhecia ficou apaixonado na hora. A banda foi formada por Fernanda Lira (baixo e voz), de São Paulo; e Luana Dametto (bateria), do Rio Grande do Sul, depois de elas saírem do Nervosa. As guitarristas são a mineira de Barbacena Tainá Bergamaschi e a Paulista de Ribeirão Preto Jéssica Di Falchi.
Com o palco todo decorado com correntes, velas, castiçais e tecidos, elas tinham a ambientação perfeita para apresentarem seu death metal com muita bateção de cabelo, inclusive em sincronia! Mais um show surpreendente e de altíssimo nível. O bom humor e carisma de Fernanda entre as canções, interagindo com a plateia, cativou todo mundo. Elas tocaram seu primeiro e, por enquanto, único álbum: o excelente Echoes of the Soul, lançado em 2021. Todas as performances chamaram a atenção da plateia, que foi ao delírio com o show.
Em seguida, foi a vez do Ratos de Porão, banda icônica do punk e do metal brasileiro que já soma mais de 40 anos de carreira e, em 2022, também fez sua estreia no Rock in Rio. Liderada por João Gordo, a banda fez um show recheado de clássicos, como “Aids, Pop, Repressão” e “Crucificados Pelo Sistema”, sem deixar de fora as músicas novas de seu último lançamento, o disco Necropolítica, lançado agora em 2022. O guitarrista Jão é o único integrante que faz parte da banda desde a sua fundação, em 1981. João Gordo entrou em 83 e virou a cara do grupo. Os outros integrantes, Boka e Juninho, também acompanham o grupo há mais de 30 e 15 anos, respectivamente, mas é a energia de Jão e Gordo que mais impressiona. Eles sempre parecem estar se divertindo nos shows e dando o seu melhor. Um clássico que ainda vale muito a pena ver, e que ainda tem muito o que dizer e contribuir, como mostra o seu álbum mais recente.
A noite encerrou com chave de ouro com o show do Dead Fish, que fez todo mundo duvidar se era mesmo uma madrugada de quinta pra sexta-feira, tamanha era a energia do público. Afinal, depois de 4 shows e 6 horas na Audio, não era de se esperar que a galera ainda aguentasse pular, cantar e gritar tanto. Mas aparentemente o hardcore tem um alto poder rejuvenescedor (que o diga Rodrigo Lima, o vocalista da banda, que tem 49 anos e aparenta ter, no máximo, 30). A banda apresentou músicas de todas as fases da sua carreira de mais de 30 anos, incluindo as clássicas como “Autonomia”, “Bem-Vindo ao Clube” e “Dinheiro”, até algumas menos óbvias como “Perfect Party” e as do seu último álbum, Ponto Cego, que fizeram muito sucesso e mostraram que vieram para ficar de vez no repertório: “Sangue nas Mãos”, “Não Termina Assim”, “Sombras da Caverna”, entre outras. Foi uma apresentação muito intensa, enérgica, como todo show do Dead Fish é. A plateia cantava todas as músicas junto a plenos pulmões, em uma comoção geral, a roda continuava animada e todo mundo saiu de alma lavada do festival.
O FIM DE SEMANA DE PRIMAVERA SOUND
O sábado no Anhembi
“Existe algo memorável em ir à primeira edição de um festival”.
Pelo menos, foi isso que falei quando comprei o ingresso do Primavera Sound sem ter ideia do que aconteceria ali, achando o lugar escolhido para sediar o evento terrível, longe demais de algum bom lugar para pegar o metrô e voltar para casa. Bom, experiências memoráveis exigem que você se arrisque um pouco, então, lá estava eu no sábado para ver como seria o primeiro dia da primeira edição do Primavera em São Paulo.
O primeiro ponto positivo foi a facilidade de entrar no Anhembi. Cheguei por volta das 14h com um amigo e, em menos de 10 minutos, tínhamos entrado — depois de passar por uma revista ridiculamente fraca, como é de praxe em todo festival ou show que já fui.
Meu principal objetivo no sábado era ver os ingleses do Arctic Monkeys, que faziam sua quinta passagem pelo Brasil, agora para divulgar o recém-lançado The Car. Por isso, não corri para algum show assim que cheguei: preferi andar pelo lugar para descobrir onde os palcos estavam e o que eu podia fazer por lá.
Uma das coisas que mais me chamou atenção foi a distribuição dos palcos. Ao chegar, você já dava de cara com o Primavera, palco que, naquele dia, pertenceria a Liniker e a Bjork, uma das artistas mais esperadas. Apesar de grande, alto e com ótimos telões, facilitando a visão em qualquer ponto perto dele, o espaço para o público era pequeno, o que me fez pensar se seria possível transitar por ali na hora de um show mais lotado. Acabei não descobrindo se foi possível ou não.
O palco Elo foi feito para aproveitar as arquibancadas do Sambódromo, ou seja, era possível assistir aos shows lá sentado, um ponto extremamente positivo para quem, como eu, fica cansado de andar e ficar em pé na metade de um dia de festival; o palco Bits, coberto e escuro, parecia perfeito para uma grande balada. Pontos negativos? Além das famosas árvores na frente do palco Beck’s, o Auditório Barcelona foi uma surpresa negativa: por ter capacidade limitada, era impossível entrar em shows nele sem chegar com muita antecedência. Algo a se corrigir na próxima edição.
Outro ponto positivo foi a falta de ativações. Enquanto outros festivais oferecem rodas gigantes, locais instagramáveis, estúdios de tatuagem, atrações e mais atrações para que o público possa brincar ou esperar entre um show e outro, esse não parece ser o foco do Primavera. Com um lineup lotado e pouco espaço de tempo entre os shows, as rodas gigantes foram trocadas por caminhadas de um palco a outro e as poucas ativações presentes, para mim, funcionaram mais como ponto de encontro e local de descanso do que para distribuição de brindes ou interações.
Depois de conhecer o local, reclamar sobre o Palco Beck’s e tomar uma cerveja (R$15, usando o copo colecionável dado pelo festival), vi, muito de perto, o primeiro show do dia: Liniker.
Vestida de rosa e encantadora como sempre, a artista não teve dificuldade alguma em conquistar o público cantando músicas de seu mais recente trabalho, Indigo Borboleta Anil, tocando guitarra e até mesmo fazendo com que todas as pessoas a assistindo se abaixassem para dar um grande salto juntos em um dos momentos mais divertidos da apresentação. Uma show woman, Liniker impressionou ao exibir vocais perfeitos e chamou atenção por parecer estar se divertindo em cima do palco — algo que senti vindo de todos os artistas que vi durante o final de semana.
Com o final do show de Liniker e sua banda, começou a dispersão do palco Primavera. Meu objetivo era o Palco Beck’s, onde queria esperar para ver o Arctic Monkeys o mais perto possível. Aqui, mais um ponto positivo: andar pelo Anhembi não é cansativo ou difícil. As longas caminhadas entre um palco e outro eram amenizadas pelo fato de que, além de asfaltado, o chão era plano e o local bem-sinalizado. Ou seja, minha reclamação inicial sobre o local escolhido para sediar o Primavera se transformou em um grande elogio.
Uma rápida visita na praça de alimentação — ponto negativo: apesar de coberta, havia poucas mesas e longuíssimas filas em um lugar que claramente tinha uma capacidade muito maior do que aquela — depois, era hora de enfrentar a multidão que se formava no palco principal.
Não foi difícil chegar relativamente perto dele: era preciso prestar atenção onde você pisava, pois os canteiros onde as famigeradas árvores estavam tinham degraus escondidos, tornando fácil tropeçar por ali, mas atravessar a multidão foi mais fácil do que o esperado.
Enquanto esperávamos pelo próximo show daquele palco, os telões exibiam o show que Bjork fazia no palco Primavera. Apesar de não conhecer o trabalho da artista islandesa, foi fácil sentir que, assim como Liniker, ela parecia feliz de se apresentar para seu público brasileiro — que mantém uma relação de adoração com ela.
O Interpol foi o primeiro show que vi no Beck’s. Os fãs que estavam lá para ver os estadunidenses pareciam animados com a banda e, a todo momento, passavam gritando a letra das músicas: “All the Rage Back Home”, “Passenger”, “PDA” e “Slow Hands”, que fechou o show, foram as que fizeram o público gritar mais. Já os integrantes da banda pareciam tão soturnos e melancólicos quanto em sua última passagem no Brasil, no Lollapalooza 2019.
O próximo show transmitido nos telões foi o de Mitski, sem o som da apresentação. Quando deixaram de tocar músicas da playlist do palco, Mitski já encerrava seu show. Cerca de 10 minutos depois, foi a vez do Arctic Monkeys subir ao palco.
O show no Primavera foi uma das primeiras apresentações do quarteto após o lançamento do disco novo, uma entediante repetição do trabalho feito em Tranquility Base Hotel & Casino. As fracas músicas do álbum, porém, não afetaram de maneira alguma o show impecável da banda: após abrir com a nova “Sculptures of Anything Goes”, a banda liderada por Alex Turner emendou uma série de queridinhas do público: “Brianstorm”, “Snap Out of It” e “Crying Lightning” fizeram a audiência esquecer do início fraco e embarcar na discografia deles.
Ao contrário da última passagem da banda pelo Brasil, Alex Turner não teve tanta dificuldade em roubar a cena e arrancar suspiros com seu charme natural, tocando guitarra e colocando e tirando seus óculos escuros na noite paulistana ao lado de um entusiasmado Matt Helders, espancando sua bateria, do guitarrista Jamie Cook e do baixista Nick O’Malley, que parecem apagados pela dinâmica que Alex e Matt possuem.
Apesar de já terem lançado sete discos, foram as músicas do AM, de 2013, que fizeram o público vibrar e a banda parece saber disso: das 21 músicas tocadas, 5 eram do álbum. Além disso, foi impossível não se entusiasmar com outros clássicos: “505” foi recebida por gritos histéricos, “Cornerstone” foi cantada a todos os pulmões e até mesmo a quase inédita ao vivo “Potion Approaching” conquistou os fãs mais hardcore do grupo. No fim, a distribuição do setlist entre os discos foi justa, e eu, que adoro o Suck it and See, fiquei feliz de ver o álbum sendo lembrado no show com “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”.
É perceptível que, mesmo querendo demonstrar sua nova identidade musical, o Arctic Monkeys sabe que precisa agradar os fãs de todas as fases da banda — fãs esses que, pelo que foi possível ver por ali, vão dos 12 aos 60 anos — e consegue se conformar e trabalhar com o saudosismo das músicas antigas muito bem. Afinal, é impossível negar que, em um show, a agitação causada por “I Bet You Look Good on the Dancefloor” e “R U Mine?”, que encerrou a noite para a banda, é preferível à introspecção da bela melancolia de “The Car”.
O show do Arctic Monkeys não foi o último da noite e muito menos do palco Beck’s, que ainda receberia o brasileiro L7NNON, mas foi o último para mim, já que eu precisava economizar voz para voltar no dia seguinte e gritar um pouco vendo Lorde e Travis Scott.
O domingo no Anhembi
“A idade te obriga a fazer escolhas”.
Após um primeiro dia agitado, a segunda parte do Primavera Sound se mostrou mais organizada para as 55 mil pessoas que compareceram ao Distrito Anhembi, em São Paulo.
Contemplando diversos estilos, o domingo teve como destaques os shows de Lorde – que fez a sua melhor apresentação no país; Travis Scott e Charli XCX, que fizeram o público se jogar no “adorado” Palco Beck’s.
A ideia era chegar cedo para aproveitar os primeiros shows do Palco Elo e torcer para manter o pique a ponto de ver oito dos shows programados para o dia, mas o cansaço já acumulado do sábado deu as caras muito antes do previsto. No fim, aquela programação robusta que a gente sempre faz na véspera de um festival acabou sendo cortada por vários motivos: dores, idade, frio, vontade de ficar sentado… até por isso, o dia só começou mesmo depois das 17h, quando Michelle Zauner e o seu Japanese Breakfast subiram ao palco.
Fazendo a sua estreia na América do Sul, o quinteto entregou um show que foi além das minhas expectativas. Ainda que o público presente não tenha sido grande, quem se colocou em meio às árvores foi presenteado com um indie pop retrô bem gostosinho de ouvir, com um setlist baseado no igualmente interessante álbum Jubilee – seis das treze músicas tocadas são dele. O carisma de Michelle no palco é outro ponto marcante: ela toca, corre de um lado pro outro e se entrega naquele local, resultando em um show fofo e recomendado para quem curte aquela dançadinha descontraída.
Na sequência, o trajeto rumo ao Palco Primavera já fazia jus ao show que eu veria: sofrência. Era hora de Phoebe Bridgers embalar aquele fim de tarde de Inverno Sound com pessoas – não todas, claro – batendo o queixo e testando sobreposições de roupas sem estragar o look.
A cantora estadunidense, que cancelou a sua vinda ao Lollapalooza Brasil no começo do ano, recompensou a espera dos fãs com uma apresentação delicada e totalmente focada no aclamado Punisher, álbum lançado em 2020. Em cerca de uma hora, a cantora mostrou nove faixas do registro, incluindo “Kyoto”, “Garden Song” e “Chinese Satellite”, tocada após um discurso em defesa do aborto seguro e legalizado. Phoebe ainda encontrou tempo para interagir – e se preocupar – com o público, dançar e mostrar ao público brasileiro, agora ao vivo, porque é um dos nomes mais aclamados do indie nos últimos anos.
Após a Phoebe, a meta era voltar ao Palco das Árvores para mergulhar de cabeça na disco music de Jessie Ware, a “nossa” Simone Tebet. No fim, as dores e a vontade de ficar sentado acabaram falando mais alto e, daquele momento em diante, sair da grama sintética não era mais uma opção.
Sem atraso, Lorde assumiu o comando do Palco Primavera com a sua era solar, um palco interativo e uma entrega já esperada do público. Hits como “Royals” e “Green Light” fizeram parte de um setlist que soube mesclar bem os seus três álbuns, resultando em momentos capazes de agradar e encher os olhos dos fãs.
A artista ainda reservou algumas surpresas para o público: a faixa “Bravado” – que não era tocada desde 2017 e foi incluída na setlist após figurar no topo do iTunes por conta de uma ação dos fãs brasileiros – e um dueto com Phoebe Bridgers em “Stoned At The Nail Salon”.
Lorde não cansou de mostrar a sua felicidade por voltar ao país. Por mais que os álbuns ainda possam dividir o público, a terceira visita da neozelandesa serviu para mostrar duas coisas: as várias versões da cantora são totalmente capazes de coexistir no palco. Além disso, é notável como ela vem dominando cada vez mais aquele território, se mostrando uma artista cada vez mais à vontade e sem medo de se entregar aos olhos do público.
Um dos pontos legais do Primavera foi a transmissão de alguns shows nos telões enquanto os palcos eram preparados. Foi assim que vi o Travis Scott colocar fogo na multidão que migrou para o palco Beck’s. A estreia do rapper no Brasil era esperada desde 2020, quando a pandemia cancelou o Lollapalooza daquele ano. Para compensar, teve um palco visualmente interessante, fã cantando com ele lá em cima, bronca em fotógrafos sem desligar o autotune, fogos e juras de amor ao público que se espremeu em meio às árvores. Ainda que de longe, era fácil perceber que aquilo era exatamente o que o povo queria.
Enquanto isso, fiquei sentado pertinho de onde Father John Misty se apresentaria. Pertinho mesmo, quase na grade. Eram 23h35 quando Joshua Tillman e sua trupe deram início a um verdadeiro culto no Palco Primavera.
Com o público bem dividido – muita gente vendo Arca e Caroline Polachek, além de outros muitos aguardando por Charli XCX – acabou sendo positivo para os fãs, que puderam ver a primeira apresentação da Chloë and the Next 20th Century Tour no país sem grandes dificuldades e de uma maneira até intimista, se assim podemos dizer.
Ainda que esse seja o seu trabalho mais recente, Misty escolheu apenas duas faixas dele para o show: “Chloë” e “Buddy’s Rendezvous”. De resto, o músico e sua banda passearam pelos registros antigos, colocando o público presente para cantar junto – e chamá-lo de gostoso nos intervalos.
“Nancy From Now On”, “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)”, “When You’re Smiling and Astride Me” e “Holy Shit” renderam belos registros para a memória de um show que, ao contrário do esperado, terminou pra cima com animada “The Ideal Husband”. Uma forma bonita de fechar um festival marcado pela boa música e, principalmente, que tem a música como seu destaque principal.
A madrugada avançava e ainda tínhamos a Charli XCX e, ainda que os registros posteriores mostrem o quão divertido foi o show, a volta para casa naquele momento era a única opção possível.
QUAL O SALDO FINAL DO PRIMAVERA SOUND?
É possível dizer que o Primavera Sound passou no teste em sua primeira edição no Brasil. O queridinho dos indies veio cercado de expectativa e, no geral, entregou um lineup que condiz bem com a sua história e o transformou em uma marca global.
Pegando o caminho inverso de concorrentes como Lollapalooza e Rock In Rio, o festival resgatou muito da “vibe” que o Lolla tinha até anos atrás: ser o grande evento para quem ama música. Quando anunciado, a minha expectativa era de que o festival preenchesse essa lacuna e isso acabou se cumprindo com sucesso.
Ainda que as marcas e ativações – que foram de carro da Audi a distribuição ostensiva de balas – estivessem espalhadas pelo Anhembi, elas não visavam competir com o que acontecia em cada um dos cinco palcos. Até mesmo os chamados “espaços instagramáveis” estavam em menor quantidade.
Apesar de diversos problemas da entrada para fora, o festival funcionou bem a partir do momento em que você adentrava por algum dos portões. Os locais de comida e bebida estavam bem distribuídos e, na maior parte do tempo, contavam com pouca ou quase nenhuma fila. A utilização dos banheiros do Anhembi – pavilhão, concentração e arquibancada – aliado aos banheiros químicos também foram um ponto alto. Inclusive, a existência de uma opção denominada “banheiro para todos” também merece destaque positivo. O festival também teve uma preocupação com a acessibilidade, contando com várias áreas adaptadas, intérpretes de libras nos telões, audiodescrição e uma equipe especializada para auxiliar pessoas com deficiência.
Sobre os shows, a localização do palco Elo foi um grande acerto do festival – e se você foi no show do Arcade Fire em 2017 no mesmo espaço vai saber do que estou falando – assim como a utilização do Auditório, algo que amplia ainda mais o leque de opções para o lineup nos próximos anos. O palco Bits também estava em um espaço interessante, o que nos leva ao uso do pavilhão: é muito bom ter opções cobertas para banheiro e alimentação, mas o pavilhão poderia ser ainda mais explorado. Só o aumento na quantidade de mesas para o público já seria perfeito.
Se faltou fila para compras, sobrou fila para a retirada de pulseiras no primeiro dia. Vários relatos pontuam uma espera de até 2h entre a chegada e a pulseira ser colocada no pulso, mostrando que esse processo precisa ser mais bem trabalhado no futuro.
O transporte também apresentou problemas, sobretudo na saída. Com a alta demanda, a quantidade de táxis e aplicativos de transporte não foi suficiente e causou transtornos. Ainda que uma linha especial tenha sido criada e eficiente na chegada, o fato de se ter poucas opções de ônibus noturnas, um número pequeno de veículos na linha especial e o metrô não ter tido o seu horário estendido por mais tempo contribuíram para que o público optasse pelos carros para sair do Anhembi, resultando em alta demanda, taxas mais altas e um trânsito mais complicado.
A decisão do Primavera Sound de escalar headliners mais cedo amenizou um pouco, criando fluxos de saída ao longo da noite, mas não foi suficiente para resolver o problema, principalmente quando se tem shows terminando às 2h da manhã.
Voltando à parte interna, a falta de lixeiras espalhadas pelo espaço contribuiu para a profusão de copos e embalagens no chão ao longo dos dois dias. Alguns pontos com baixa iluminação e falta de sinalização também merecem um maior cuidado. No entanto, o maior foco de reclamações foi um só: o palco Beck’s. Projetado para receber as principais atrações e para um público de até 45 mil pessoas, a estrutura foi montada em um estacionamento e em meio a diversas árvores, o que atrapalhou a visão em diversos pontos.
Ainda que a produção do Primavera Sound tenha tentado amenizar a situação com telões, o palco acabou sendo o maior problema nos dois dias: seja pela visão, pelo som oscilante (algo que também pode ser ligado ao vento e às árvores) do palco, a distância e a entrada/saída do espaço, que acabou prejudicada com a presença de uma área VIP. A meu ver, a saída seria mudar o palco Beck’s de lugar, o transferindo para a dispersão do Sambódromo, que acabou não sendo aproveitada como poderia, sendo usada apenas para a entrega das pulseiras.
Outro ponto é o caminho entre os palcos. Acredito que ele poderia ser mais bem aproveitado, seja por outros espaços de convivência, mesas, telões ou até mesmo as tão faladas ativações de marcas parceiras. Era possível criar algo sem prejudicar o trajeto e que seria capaz de tornar a caminhada um pouco mais atrativa.
Ainda que tenha tido seus problemas, o Primavera Sound – pelo menos pra mim – ficou longe de desagradar o público ou fazer feio. Mais do que isso, ocupa uma lacuna que ficou meio de lado nos últimos anos e tem tudo para se consolidar como uma das boas opções de festivais no Brasil.
Textos:
- Introdução, Domingo e saldo final por John Pereira.
- Primavera Na Cidade por Bárbara Monteiro.
- Sábado por Gabrielle Caroline.
Fotos: Pridia