A pandemia virou a vida de muita gente de cabeça pra baixo. Com Noel Rouco, paulistano que é guitarrista, vocalista e compositor, não foi diferente. Depois de passar quase 20 anos à frente do Rock Rocket, banda que virou uma lenda na cena independente e alternativa do Brasil, o artista se reinventa com um novo grupo, o power trio Os Roucos.
Completam a formação da nova banda o baixista Rodrigo Luminatti e o baterista Guto Gonzalez. Todos eles cantam e se revezam nos vocais entre as músicas, o que deixa tudo ainda mais interessante. O som dos Roucos certamente irá agradar os fãs saudosos do Rock Rocket, mas tem algumas novidades. É mais rico, com mais elementos e estilos além do rock de garagem e punk.
O último single lançado, por exemplo, chama “Pista de Dança” e lembra o grupo Mescaleros, de Joe Strummer (que era líder da seminal banda punk The Clash e experimentou de um tudo em sua arte), misturando ska, surf music, teclados de Eduardo Prado e ritmos bem dançantes e “pra cima” na canção.
Outro destaque é a canção “Brasil 2000”, que ganhou um clipe super especial feito por Leandro Franco, que é arquiteto, cartunista e também baterista e vocalista do Asteroides Trio, grupo muito bacana de Arujá (interior de São Paulo) de rockabilly que também tem um projeto interessantíssimo com a lenda viva João Gordo, do Ratos de Porão, tocando clássicos da banda nesse estilo retrô para comemorar os 40 anos de carreira. Vale ouvir o disco, que ficou ótimo, com versões muito curiosas e criativas dos clássicos do Ratos.
Voltando à canção dOs Roucos, é a letra mais politizada da banda, destacando sua vertente punk entre o caldeirão de estilos e gêneros misturados pelo grupo em seu rock com letras em português, guitarras em destaque e vocais muito bem trabalhados.
Agora, eles estão preparando seu primeiro álbum cheio, que promete ser um dos melhores lançamentos do ano. Depois de acompanhar os lançamentos dOs Roucos pela internet, fui ver um show deles no lendário Studio SP, na Rua Augusta, e fiquei impressionada com a performance ao vivo, em um show enérgico com entrega total da banda. Foi aí que pedi uma entrevista para o Noel, para divulgarmos esse novo projeto que merece muito mais reconhecimento e atenção do que está tendo (para de moscar e aperta o play, caro leitor).
Ele conta tudo sobre Os Roucos e comenta até sobre uma possível reunião do Rock Rocket para as viúvas inconformadas com o fim da banda, como eu.
Confira a seguir essa exclusiva:
Audiograma: Como surgiu a banda Os Roucos? Você, o Rodrigo e o Guto já eram amigos ou já tinham tocado juntos antes?
Noel Rouco: Nós já éramos amigos, mas nunca havíamos tocados juntos. Conheci o Guto quando gravei com ele no Estúdio Lamparina, em 2015. Fizemos o último disco do Rock Rocket e já ficamos próximos. O Luminatti conheci de fato no começo de 2016, quando comecei a trabalhar efetivamente com venda de shows e ele trabalhava com a banda Cachorro Grande, ficamos bem amigos rápido. Muito provavelmente nos encontramos antes, no começo dos anos 2000, quando ele tocava no Motores, mas não temos uma lembrança definitiva sobre isso (risos). Um pouco antes da pandemia encontrei com o Guto em um bar e falamos sobre montar uma banda juntos, mas o assunto acabou ficando um pouco de lado por falta de tempo. Depois começou a pandemia e com a agenda mais folgada retomamos as conversas. Quando começamos a colocar a mão na massa de fato, chamamos o Luminatti pro baixo, eles também já eram amigos então tudo fluiu de maneira muito rápida e espontânea.
Achei bem legal vocês dividirem os vocais. Na “Movimento Contínuo” isso fica bem evidente. Antes só você cantava, né? Foi uma coisa intencional essa mudança?
Não lembro exatamente como surgiu a ideia, provavelmente foi o Guto, mas como somos um trio existe um consenso que temos que todos “carregar o piano” pra extrair o máximo do que o formato permite. Como o Rodrigo também canta, achamos que ficaria bacana revezar nas músicas, até para soar menos repetitivo e dar uma versatilidade maior pra banda. Nos dois primeiros singles eu fiz a voz principal, nos dois seguintes (Movimento Contínuo e Brasil 2000) já fomos alternando e gostamos bastante do resultado. Tem música já gravada que vai sair no disco que tem os três se alternando cantando também, além dos backing vocals que todos participam na maioria das músicas.
O nome da banda vem do seu apelido, “Noel Rouco”?
Ficamos um bom tempo trocando mensagens tentando achar um nome pra banda até que surgiu essa ideia e todo mundo achou legal, até porque no geral os vocais na banda são mais “limpos” e cantados com menos drive em relação a outras referências que temos no rock. Achamos legal esse contraste e da maneira como soou.
A nova música, “Pista de Dança”, veio bem a calhar nesse momento de volta dos eventos com a pandemia dando uma melhorada…que timing! Foi proposital?
Foi mais ou menos proposital. Explico: “Pista de Dança” já estava gravada e na lista das que seriam lançadas antes do disco há algum tempo. Na última sessão de gravação do álbum (gravamos em duas sessões, de 4 dias cada uma), surgiu a música “Brasil 2000”, que entrou de última hora no repertório, isso entre setembro e outubro do ano passado. Como estamos bem revoltados com tudo o que está rolando por aqui no Brasil, resolvemos passar ela na frente de “Pista de Dança”, sentimos essa urgência. Com esse adiamento, “Pista de Dança” acabou sendo lançada nesse período de melhora da pandemia. Mas de fato foi algo que passou pela nossa cabeça quando finalizamos ela, lançar quando os eventos e festas estivessem rolando pra fazer mais sentido e combinar com o clima festivo que tentamos passar.
Nessa música tem uma parte que soa bem ska, tem muitos teclados e é bem dançante mesmo. Notei que Os Roucos têm mais elementos do que o Rock Rocket tinha, é um som mais rico, com mais misturas e referências.
Buscamos reunir as várias referências que temos dentro do universo do rock para que cada música tivesse sua própria história, porém, sem que a banda deixasse de construir uma identidade própria. É bem legal explorar vertentes que eu sempre escutei mas que nunca tinha tocado. Esse período de criação dOs Roucos foi de muito aprendizado pra mim como músico e compositor, acredito que pro Rodrigo e pro Guto também. Tive que me esforçar mais pra tocar e cantar essas músicas. E estamos gostando bastante desse caminho. Em cada canção tentamos fazer com que a composição, a produção e os arranjos soem diferente da outra. Então pegamos referências do pós-punk, ska, rock alternativo, indie, punk rock, power pop, entre outros, e fomos construindo as músicas com essa liberdade de transitar entre os gêneros que gostamos. Sobre as letras, funciona da mesma maneira: não queremos ser uma banda monotemática. Então tem música sobre o cotidiano, como “Cat In The Window”, tem mais introspectiva como “Movimento Contínuo”, mais próxima de música de protesto, como “Brasil 2000”; e alto astral para dançar mesmo, como “Pista de Dança”, para ficar nos exemplos do que já lançamos. O The Clash é uma grande influência e fonte de inspiração, com certeza.
Eu vi o show no Studio SP e queria elogiar seu vocal, acho que você evoluiu muito cantando! Dá pra perceber uma diferença pra melhor. Teve algum treinamento?
Obrigado pelo elogio! Não fiz nenhum tipo de treinamento nesse período, acho que o que rolou foi que as músicas novas têm uma exigência vocal diferente das que eu estava acostumado a cantar, então tive que encontrar um outro ponto de encaixe pra voz. Talvez eu tenha me libertado parcialmente de certos vícios vocais que eu tinha antes também. Em paralelo, hoje tenho uma percepção maior em relação à música que escuto e produzo, isso acaba naturalmente levando a um amadurecimento e ampliação dos horizontes na hora de construir e executar.
O que acharam desse show no Studio SP? Acredito que tenha sido um sucesso, achei excelente! Mas não foi a estreia da banda, certo?
Gostamos muito! Foi somente o quarto show que fizemos: estreamos ao vivo em dezembro do ano passado no Jai Club, fizemos em março o Hangar 110 e o Kiss Club (programa com transmissão ao vivo na rádio Kiss FM) e esse do Studio SP. Que venham os próximos!
Como foi a experiência de gravar no Canto da Coruja? O estúdio fica mesmo no meio do mato? E o Guto é o dono, certo?
O Guto é um dos sócios do Canto da Coruja. Gravar lá é espetacular! Fica em Piracaia, interior de São Paulo, cerca de uma hora e meia da capital. Ele fica em uma área rural um pouco afastada da cidade, bem no meio da natureza. Além da beleza natural e do relaxamento que o local causa, o estúdio é excelente, o som lá fica muito “vivo”. É uma experiência única passar alguns dias preocupado apenas em gravar e tirar o melhor som possível. Não é à toa que diversos artistas, desde os independentes até nomes já consagrados da música brasileira, têm procurado o Canto da Coruja pra produzir os seus álbuns.
O clipe de “Brasil 2000” merece um destaque à parte, ficou super legal o trabalho de ilustração e animação do Leandro Franco! Como foi trabalhar com ele? O logo da banda foi ele que fez também?
O Leandro Franco é genial, conheci o trabalho por outros clipes muito bons que ele havia realizado, já cultivava essa vontade de fazer algo junto com ele há algum tempo . Quando pintou “Brasil 2000”, sugeri pra banda de fazer com ele porque achei que a linguagem ia combinar muito com o que a música propunha. O Franco fez todo o clipe: desenvolveu o roteiro, ilustrou e animou, foi um privilégio ter ele conosco. O logo da banda quem fez foi o Fernando Dalvi, na ocasião do primeiro single. Gostamos tanto que mantivemos até hoje!
E a letra dessa música também é muito interessante, sobre como o Brasil tinha uma promessa de se tornar uma super potência nos anos 2000 mas acabou na verdade retrocedendo nessas últimas duas décadas. Vocês acham importante a banda se posicionar politicamente?
Sobre se posicionar politicamente, acho que fica a critério de cada um. Em nossos perfis pessoais nos posicionamos com frequência maior, no da banda preferimos nos manifestar principalmente através dessa música. O Brasil sempre foi um país muito complexo e com problemas muito profundos. No entanto, a impressão que temos é que no começo dos anos 2000 havia uma perspectiva de melhora no médio e longo prazo, nos era permitido sonhar, pelo menos. A cultura era valorizada, ainda que a passos muito lentos a desigualdade parecia recuar um pouco, havia uma tendência de inclusão. Hoje o que vemos é um retrocesso brutal em todas as áreas: ambiental, social, na educação, econômico… está tudo pior. E o que causa mais revolta é que esse retrocesso foi proposital, não foi algo que aconteceu somente pela incompetência e corrupção tradicional dos políticos (e podem ter certeza que incompetência e corrupção são características marcantes também do atual governo), existe um movimento organizado para destruir o que ainda está de pé. O que dizer de um governo que postergou ao máximo a compra de vacinas no meio de uma pandemia que matou e desempregou milhares de pessoas? Um ministro do meio ambiente que tenta desestruturar as leis de proteção ambiental? Enfim, a lista de absurdos é longa, não vou me estender. No caso da música “Brasil 2000”, ela foi feita 2 dias após as manifestações golpistas promovidas pelo “despresidente” da republica no 7 de setembro de 2021, esse foi o gatilho. O cara faz um governo de merda e ainda fica ameaçando dar golpe a todo instante? Cai fora!
2022 tá só na metade ainda, mas vocês estão a todo vapor…também teve o lançamento de um single com o Johnny Monster (Saída de Emergência). Como foi essa parceria? Eu acho ele incrível!
O Johnny Monster é um grande amigo e parceiro de longa data, um puta artista! Já fizemos tour juntos em bandas diferentes, tocamos juntos em tributo aos Stooges algumas vezes, já fui em vários shows dele em diferentes projetos, do Daniel Belleza & os Corações em Fúria ao projeto solo, sempre foi muito próximo. Quando rolou o convite para tocar no projeto “Futuro Reflexo”, o tributo onde diversos artistas fizeram cada um uma releitura de uma música do álbum “Futuro Perplexo”, que ele lançou no começo do ano, ficamos muito felizes. A música “Saída de Emergência” tinha a nossa cara e foi uma sorte poder regravar, já era uma das minhas preferidas do disco. E o legal é que pudemos tocar essa música ao vivo com o Johnny nos 2 últimos shows dos Roucos, estendendo essa parceria para além do estúdio.
Vocês já lançaram 6 singles desde a estreia da banda, em 2020. Existem planos de EP ou álbum? E de turnê? Quando será o próximo show?
O álbum já está gravado, em fase final de mixagem, a ideia é lançar em meados de julho. Serão 12 músicas no total, incluindo os singles que já lançamos. Em breve vamos divulgar novas datas na agenda.
Desculpa, mas vou ter que falar sobre isso…Tem muito fã do Rock Rocket que não se conforma com o fim da banda. Por que o grupo terminou, afinal? E existe alguma possibilidade de revival?
O Rock Rocket acabou por uma série de motivos. Na minha leitura, a banda já tinha cumprido um ciclo, durou 17 anos, teve uma carreira de altos e baixos, acertos e erros. Aos poucos ela deixou de ser a prioridade e a principal fonte de renda. Manter uma banda exige muita dedicação, tem que todo mundo remar junto pra parada funcionar, não tinha mais essa energia e motivação. O trabalho que dava não estava mais gerando a recompensa necessária pra fazer valer a pena continuar, pelo menos pra mim. O “Citadel”, disco que lançamos no final de 2015, foi o último gás que demos, ele foi bem aceito e recebeu boas críticas, é o nosso preferido. Fizemos o que tínhamos que ter feito. Fico feliz por até hoje ter bastante gente que gosta da banda e que continua escutando, sou grato pela carreira que tivemos, pela galera que sempre nos apoiou, pelos parceiros de banda, pelas amizades que fiz e pelo aprendizado que tive nessa caminhada, mas a vida tem que seguir. O que faltou de fato foi ter gravado com o Chapolla, que assumiu a bateria da banda em 2016 e ficou até o final, é um grande baterista e a banda estava tecnicamente afiada nos últimos shows. Sobre um revival, eu não descarto nenhuma possibilidade, mas não existe um movimento em relação a isso no momento. Em 2022 completamos 20 anos da fundação da banda, doideira isso, tenho boas lembranças de todas as fases da carreira do Rock Rocket.