Um dos maiores clichês da indústria musical é a pressão sobre os artistas na hora de avaliar seu segundo disco. O segundo álbum é ainda mais carregado de expectativas e cobranças caso a estreia tenha sido muito bem sucedida. Hoje em dia, na era do streaming, dos singles e EPs, lançar um álbum já é por si só uma tarefa hercúlea. Soma-se a isso toda essa ansiedade e temos como resultado um grande marco na carreira de qualquer músico, que geralmente ganha adjetivos como “amadurecimento” e “maturidade”.
No caso do trio paranaense Tuyo, que estourou depois de seu primeiro álbum cheio (Pra Curar, de 2018), não foi diferente. Eles já ganharam bastante reconhecimento (merecidíssimo, aliás) com o primeiro EP (Pra Doer, de 2017), foram super bem recebidos tanto pelo público quanto pela crítica com o primeiro disco e agora de fato se mostram mais adultos com o segundo álbum, o tão aguardado Chegamos Sozinhos em Casa, lançado 3 anos depois da estreia oficial. Nas palavras da própria banda, o “adultecer”:
“Todos os boletos do mundo nas mãos e a gente ainda tem medo do escuro. Nome no SERASA e no roll de pontuação do League of Legends. Testa de ferro de multinacional, a cama com todas as pelúcias desde 1996. Pleno domínio dos termos técnicos, nenhum controle das emoções. Meio infantojuvenil, meio terceira idade, meio adolescil, meio hiper maduro. Adultescemos diferente”
O que achamos do disco?
Dane-se a pressão do segundo disco! A Tuyo atravessou esse rito de passagem pleníssima, mais bela do que nunca, simplesmente arrasando. O disco é maravilhoso e vale muito a audição.
Não sinto uma ruptura na sonoridade do EP e do primeiro disco em comparação a esse novo. Há mudanças, mas não são tão drásticas. O que dá pra perceber é uma riqueza muito maior de detalhes, camadas, texturas e experimentações, além de muito mais colaborações. Mas já havia elementos eletrônicos desde o EP. Agora eles aumentaram e o Chegamos Sozinhos em Casa tem sim um estilo mais pop, soa mais grandioso até, mas a essência da Tuyo está sempre lá. Bastante violão, guitarra limpa, bastante harmonia vocal, partes mais intensas e explosivas entre trechos mais calmos.
As letras e a forma de cantar da Tuyo são muito, muito lindas e realmente tocantes. É como se a gente se apaixonasse escutando, mesmo quando falam de coisas mais sofridas e tristes, porque é uma beleza que atrai muito. É como se fosse uma música encantada, um canto de sereia, uma coisa magnética que puxa a gente. De onde vem todo esse sentimento, gente? E como que faz pra cantar tão bonito assim?
A Tuyo é formada pelas irmãs Lio (Lilian) e Lay (Layane) Soares e por (Jean) Machado. Antes desse projeto, o trio fez parte da banda Simonami e Lio e Lay chegaram a participar do reality The Voice. O nome em espanhol, que significa “seu” ou “teu”, ainda carrega um trocadilho, pois “Tu” pode ser traduzido como “você”, enquanto “yo” significa “eu”. É como já dizia o saudoso Tim Maia: “você e eu, eu e você, juntinhos!”.
Trabalhando de forma independente e bem DIY, a banda trouxe desde o início a proposta de questionar a imagem da negritude na sociedade, tanto como artistas quanto como cidadãos, quebrando estereótipos. Desde o princípio, também se destacam no grupo as letras em português extremamente melódicas, que soam como poemas, com lindas harmonias vocais e sentimentos intensos. Mesmo quando falam de coisas difíceis, a sonoridade é bonita e traz alento.
Ganhando o mundo
O novo disco Chegamos Sozinhos em Casa conta com patrocínio da Natura Musical após o projeto ter sido selecionado pelo edital, que é super concorrido. Além disso, o trio apresentou uma das músicas novas no aclamado festival South by Southwest (SXSW) em performance que foi elogiadíssima pelo jornal The New York Times, que a considerou como um dos grandes destaques do evento. Vale a pena assistir, é realmente impecável:
Entrevistamos a Lio sobre como foi fazer esse novo disco, os planos do grupo para o futuro e como se sentiram vivenciando os últimos grandes acontecimentos de sua carreira. Confira!
Qual é a sensação de terem sido selecionados por um edital tão concorrido assim, ao lado de tanta gente boa, como é o Natura Musical? Isso possibilitou a vocês fazer mais coisas na produção do disco, que antes seria bem mais difícil até por conta de terem menos recursos financeiros?
A satisfação do reconhecimento é muito parte da busca dos artistas em geral, acredito eu. Com a gente não foi diferente! O prazer de ter sua jornada reconhecida é das coisas mais bonitas no nosso trajeto.
O Natura Musical faz mais que patrocinar um disco, na verdade! Além da possibilidade de conseguir viver um processo hiper elitizado e distante da nossa realidade, que é produzir um disco com algum recurso, a gente também hoje faz parte de um catálogo histórico promovido por essa equipe que acompanhou a gente e outros artistas no disco. Existe um mapeamento bem bacana sendo feito pelo Natura Musical para que a gente tenha um inventário mais rico do que se faz hoje na música e a gente celebra muito fazer parte desse movimento.
Onde e como vocês gravaram o novo disco? As bases eletrônicas e beats foram vocês que criaram e tocaram também?
O disco foi gravado em Curitiba, em São Paulo e no Rio de Janeiro, quando a gente ainda podia encontrar as pessoas, lá no começo do ano passado. Nosso processo geralmente parte de um núcleo de pré-produção composto por nós mesmos. Machado passou 2019 pesquisando novos timbres, experimentando a mistura de células rítmicas e timbres característicos de diferentes gêneros. Passou pelo house, grime e afrobeat, até chegar no gospel. Ele tem a prática de, nas pesquisas, elaborar pequenos ciclos harmônicos e colecionar esses ciclos. Nos juntamos em janeiro do ano passado pra deliberar sobre quais desses ciclos a gente podia desenrolar, explorar. Fomos desenvolvendo a temática das letras também no final de 2019 e acumulando esses temas pra desenvolvermos juntos. Decididos os ambientes favoritos em cada loop, nos reunimos pra escrever. Em seguida distribuímos essas demos pros produtores musicais que escolhemos pro disco e fomos conversando no desenrolar das gravações até chegar num lugar bonito pra todo mundo. Gravamos os violões, os baixos e as guitarras e tivemos a colaboração de alguns amigos incríveis pras teclas, como o Lux Ferreira, por exemplo. As bases eletrônicas e os beats são criados em conjunto com os produtores musicais. É sempre um trabalho de bastaaaaante troca.
Por que o nome do álbum é “Chegamos Sozinhos em Casa”? Foi por conta de vocês não morarem mais juntos? Lio e Lay, vocês são irmãs. Foi a primeira vez que passaram a morar separadas? Isso mexeu com o processo de composição de vocês? Saíram de Curitiba?
São muitas as variantes que levaram a gente pra esse nome, mas acredito que ele vem muito na intenção de agrupar os temas do disco, que fala sobre momentos marcantes da vida adulta. Um deles aconteceu com a gente quando, na vontade de estabelecer um território particular, decidimos nos dividir. Não sei dizer se foi essa mudança que provocou outra prática na hora de compor, mas realmente mudamos um pouco o jeito de criar. Sempre escrevíamos sozinhos partindo da letra pra chegar na harmonia. No “Chegamos Sozinhos” a gente resolveu se desafiar e escrever um na frente do outro, em conjunto, sem medo de expor inclusive as ideias ruins. Quando a gente escreve sozinho pra depois mostrar pro amigo tem um tempo que dá pra censurar uma ideia ou outra, gerenciar as inseguranças. Escrever junto ajudou bastante a não sabotar os versos duvidosos e fazer com que eles ganhassem vida no verso do outro.
Existe uma clássica pressão sobre o segundo álbum que, acredito eu, muito artista sente. Isso rolou com vocês? Ainda mais tendo tido tanto sucesso com os trabalhos anteriores, desde o EP de estreia até a consagração com o primeiro disco. Ficaram com medo do que os fãs e a crítica iam achar? Havia muitas expectativas altas dos outros e de vocês mesmos para esse novo projeto?
Antes de qualquer coisa, somos muito gratos pelos adjetivos bonitos, pelo carinho com que as pessoas acolheram o “Pra Doer” e o “Pra Curar”. O negócio é que, quando não se tem nada a perder, todo risco parece mais uma aventura, aí o começo é uma façanha divertida. É claro que dá um nervosismo pensar em perder essa gana de viver aventuras e substituir esse sentimento por uma dívida com as pessoas. Mas o “Chegamos Sozinhos” só tinha um compromisso, que era o da extrema franqueza. Nenhum de nós sabe dizer qual gênero a gente desenvolve, que tipo de música a gente faz, então fica fácil não precisar manter uma fidelidade estética, poder explorar outras coisas. Talvez nosso compromisso de coerência seja mais com a gente mesmo do que com outras pessoas. Entregar um trabalho na certeza de que fomos sinceros, honestos com o que sentimos. Acho que a ansiedade e o nervosismo ficaram mais por conta desse desejo de ver nosso trabalho no mundo, de entender uma etapa como concluída.
Também já virou clichê falar que o artista “amadureceu” quando sai o segundo álbum, mas vocês têm de fato verbalizado esse “adultecer” na divulgação do disco novo. Que tipo de amadurecimento foi esse?
Talvez todo mundo tenha envelhecido um pouco nesses últimos meses desde o ano passado, né? Quando somos postos diante de escolhas muito duras, acontecimentos muito difíceis de digerir, é preciso revisitar as certezas, reorganizar o que se acredita. Talvez a maturidade venha desse tipo de pressão, da quantidade de escolhas difíceis que algumas situações impõem. Meu palpite é que o amadurecimento veio daí. Desse movimento de revisitar antigas angústias e repensar resoluções. Esteticamente, talvez a sensação venha da gente ter conseguido ampliar nossos recursos, investigar novas linguagens e trocar com mais pessoas. Enquanto nos trabalhos anteriores a gente contava com um violão e pouco conhecimento de timbres sintéticos, nesse segundo disco temos uma instrumentação mais rica e muito mais prática no desenrolar do nosso universo eletrônico.
Eu vi no Instagram da banda o significado da cor azul, que marca toda a identidade visual do disco novo. Quando vocês falam do “não território” seria uma sensação de não pertencimento? E quando dizem que o território era inexistente e agora é incontestável, é sobre as conquistas que tiveram? Se sentem mais seguros agora em relação à carreira de vocês? Pessoalmente falando, como se deu essa mudança de “território”, de lar, pertencimento?
Temos acompanhado com curiosidade as conversas sobre como a sociedade vai passando a escutar a voz de pessoas nunca antes consideradas enquanto indivíduos. A gente acompanha enquanto artista e enquanto pessoas que fazem parte desse grupo difícil de ser ouvido. Quando a gente pensa num não território está falando sobre todos os grupos “imperfeitos”, fora da cartilha, com menos oportunidades e acessos por conta do tipo de cabelo, do peso corporal, do gênero, da orientação sexual, enfim. Aquele papo que a gente sempre desenrola sobre dinâmicas de poder. Em “Chegamos Sozinhos em Casa” nós contamos nossas histórias a partir do nosso ponto de vista, o que é uma baita novidade visto que até pouco tempo atrás (e ainda hoje em muitas ocasiões) pessoas negras tinham seu caráter, sua cultura, sua história toda narrada por pessoas cujo interesse era nos achatar, nos encurralar, nos apequenar. A grandiosidade de qualquer discurso está no quão plural ele pode ser. Nós integramos essa movimentação na vontade de multiplicar os pontos de vista na arte, na vida.
Por que o disco está dividido em dois? A segunda parte será um complemento dessa em que sentido? O que podemos esperar dela e quando deve sair?
A gente sabe que, apesar da leveza nas melodias, os temas na Tuyo são sempre mais densos. Deu vontade de facilitar o processo e dividir os temas. Enquanto a primeira parte fala mais sobre essas mudanças geográficas – viajar pro Espírito Santo em “Vitória Vila Velha”, sair de casa em “O Jeito é Ir Embora”, viajar para dentro do próprio subconsciente no “Sonho da Lay”, viajar pro passado e pro futuro em “Sem Mentir”… enfim. A segunda parte reserva novas propostas, ainda aliadas à ideia de tornar-se adulto. Ele sai ainda esse ano e eu sou mundialmente conhecida como a rainha do spoiler, então vou parar por aqui pra não estragar a surpresa pra turma (risos).
O trabalho da Juh Almeida ficou simplesmente LINDO. As fotos estão incríveis. Como foi trabalhar com ela? Vocês três participaram ativamente dessa criação visual também?
A Juh parece que faz parte da família há anos. Nos conhecemos justamente por nos admirarmos mutuamente enquanto artistas e foi mágica. Não tivemos nenhum esforço em transmitir nada sobre o conceito do disco porque ouvindo pela primeira vez ela já tinha sacado tudo, todos os temas, todo o discurso por trás das músicas. Nós somos sim muito participativos e fomos acompanhando de perto o desenrolar do processo mas mal foi preciso interferir. Além da Juh, que é a mais sensível e inteligente no que faz, também contamos com a direção de arte da Edi Alves, o figurino do Jorge Moura, a beleza da Yanke… o time mais alinhado com quem a gente já trabalhou. Todo mundo sabia exatamente do que a gente tava falando no disco e cada um desenvolveu o melhor em sua linguagem. Nosso desejo é seguir trabalhando com esse time em todas as ocasiões que a gente puder.
Como foram firmadas as parcerias do disco novo? Algumas já vinham de longa data, como o Lucas Silveira. E o Jaloo, como que foi trabalhar com ele?
Essas parcerias surgiram de carinhos antigos, na verdade. Encontros em festivais, flertes de internet, finais de show em camarim… geralmente nossas amizades de estrada acabam resultando em colaborações. Quando convidamos Jaloo para fazer parte desse disco, o desejo era de poder passar tempo junto em estúdio, poder reservar um tempo pra criar juntos, conversar, se divertir e curtir essa amizade para além da música, mas por conta da pandemia parte dos sonhos foi comprometida. Digo parte porque a Covid-19 cancelou a convivência, mas o comprometimento do Jaloo entregou a voz. E a ideia é que não pare por aí. Gostamos bastante de desenrolar coisas com outros artistas, já vivemos várias dessas aventuras e não queremos mais parar.
Eu sei que é cafona essa parada de “definir seu estilo” e se encaixar em apenas uma caixinha de gênero musical, mas agora vocês se sentem mais confiantes em descrever o que é o som da Tuyo, ainda que seja uma mistura de muitas coisas? Vocês acham que têm mais autoconhecimento agora? Ter participado do SXSW e ganhado aquele reconhecimento do NYT ajudou vocês a terem mais confiança como artistas para se colocarem nesse novo trabalho?
Não sei se a definição de gênero depende muito de confiança…nos sentimos na verdade cada vez mais confiantes pra dissolver de vez a ideia de gênero musical. Episódios como esse do SXSW e a menção do NYT prestam pra nós o serviço que a gente mais precisa, que é chegar em mais pessoas. Ultrapassar a barreira do recurso, da língua, e atingir muita gente no exercício de sentir as coisas. Eletrônico, pop, folk, indie, MPB, a gente pode passar por tudo, beber de muitas fontes, mas o exercício do sentir permanece.
Nesse segundo disco mudaram muito as referências e inspirações de vocês?
Acredito que o que mais mudou foi a visão que a gente tem sobre as coisas que viveu e os recursos que a gente tem pra explorar. Ter tido um trabalho anterior bem aceito nos permitiu uma liberdade muito maior pra arriscar mais, explorar essas referências nuns lugares mais ousados. Machado e Lay sempre foram grandes consumidores de música eletrônica, mas só agora temos recursos pra explorar esse tipo de construção do jeito que a gente queria. Então as referências e inspirações, as coisas mudaram, mas de outra forma — a pira de misturar organicidade com um universo eletrônico, a vontade de falar umas coisas difíceis de dizer, tudo segue ali, só que sob outras perspectivas.
Já tem algum plano para apresentar esse disco novo ao vivo, ainda que seja uma impossibilidade fazer show presencial nesse momento? Vai ter live, programa de TV, mais clipe, alguma coisa assim?
Temos nos mantido firmes no compromisso de nem cogitar show ao vivo — nem em carros, nem com público reduzido, enfim. Não nos sentimos seguros. Enquanto não tiver vacina e seguirmos nesse desgoverno genocida sem suporte não vamos arriscar nem a nós mesmos nem ao público. Ainda vem muita coisa legal esse ano envolvendo o “Chegamos Sozinhos em Casa”. Estamos ficando bons nisso de encontros virtuais! Vem algumas lives bem interessantes por aí, com música para todo o Brasil. E, quando for a hora, vamos seguros juntos cantar tudo que a gente puder ao vivo, berrando de felizes. Por enquanto, vem volume 2 e mais desdobramentos desse trabalho ainda esse ano!
Logo depois da entrevista, a Tuyo fez uma live apresentando o disco novo ao vivo pela primeira vez a convite do Sesc. O vídeo é esse aqui em cima. Pode apertar o play sem medo que vale a pena. Eles nunca decepcionam!