Os filmes da Disney são a fonte de diversas músicas inesquecíveis para seu público: temos Let it Go em Frozen, Beauty and the Beast em A Bela e a Fera, Circle of Life em Rei Leão e Cruella de Vil na trilha de 101 Dálmatas.
E é a personagem tema dessa última música que protagoniza o filme Cruella (2021), novo lançamento da Disney+ que conta a história de origem da famosa vilã.
Como a maioria dos filmes da Disney agendados para lançamento em 2020, Cruella teve sua estreia marcada para acontecer simultaneamente no serviço de streaming da companhia, mediante o pagamento de R$69,90 para o chamado premier access — taxa essa que é paga além da assinatura mensal de R$27,90 cobrada para se ter acesso ao catálogo — e nos cinemas. Mesmo em meio à pandemia descontrolada no Brasil, o filme liderou a bilheteria em sua semana de estreia. Mas, apesar da inexistência de dados de audiência do filme na Disney+ no país, Cruella teve uma audiência relativamente baixa nos Estados Unidos se comparado à Mulan, outra estreia na plataforma que aconteceu no mesmo período de 2020.
Isso não impediu que uma sequência do filme fosse anunciada pouco tempo depois da estreia e que a crítica apreciasse alguns detalhes da história protagonizada por Emma Stone, destacando o visual do filme, a ambientação, a atuação de Emma Thompson, que interpreta a antagonista Baronesa von Hellman — que tem um quê de Miranda Priestly de O Diabo Veste Prada — e sua trilha sonora.
Foto: Reprodução
A trilha de Cruella
Ambientado na Inglaterra dos anos 70, é praticamente impossível ignorar o papel que a música tem na origem de uma das vilãs mais conhecidas e glamourosas da Disney.
Porque, ao contar a história de Estella, criança que não se encaixava entre as outras e que, após se tornar órfã, cresceu cometendo furtos sofisticados em meio às ruas londrinas, é preciso contar com as músicas que faziam sucesso na época, tanto na trilha sonora quanto nas roupas criadas pela mulher que se tornaria Cruella de Vil.
E, apesar do sucesso de outros estilos musicais na época que acabam fazendo parte da trilha do filme, a música que dominava a Inglaterra nos anos 70 era o rock, que se mostra tanto visualmente quanto em sua trilha.
Nas roupas de Cruella, por exemplo, o punk é predominante. Musicalmente falando, o gênero tem raízes no glam rock, popularizado por bandas como New York Dolls, no hard rock, de onde vieram Black Sabbath, The Who e o Kiss, e no garage rock, de onde tem origem uma das principais filosofias do punk: o Do It Yourself, que promove a ideia de fazer as coisas, como gravações e distribuição de música e até mesmo roupas, acessórios e outros materiais por contra própria, simplificando a relação entre o artista e o público e permitindo com que artistas se expressem livremente, sem a interferência de grandes corporações.
É com essa filosofia do movimento que os visuais do filme são construídos: Cruella abandona os visuais discretos que usava enquanto era Estella para, progressivamente, criar e utilizar roupas que combinam com a estética punk.
Enquanto a trilha sonora passa do pop dos Bee Gees, Sandy Gaye e da era psicodélica dos Rolling Stones (She’s a Rainbow, single do disco Their Satanic Majesties Request, quando a banda tentou imitar o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles) para o rock do The Doors, Deep Purple e de Suzi Quatro, Cruella apresenta uma sequência de roupas criadas por ela mesma, com maquiagens temáticas e peças que são feitas para lembrar as roupas criadas por Vivienne Westwood, um dos maiores nomes da moda punk inglesa.
Couro, cores fortes, como os característicos vermelho e preto da personagem, correntes, o animal print — afinal, estamos falando de Cruella e não podemos deixar a estampa de dálmatas de lado — e trajes militares remetem à estética punk, presente na trilha sonora nas figuras de The Clash e Blondie, e se misturam ao tradicionalismo que obviamente é influência da Baronesa Von Hellman, cujos trajes são inspirados por marcas clássicas como Dior e Givenchy. Referências à extravagância glam rock de David Bowie e Freddie Mercury também estão lá, assim como suas composições — existe música melhor para definir quem Cruella está se tornando do que Stone Cold Crazy, do Queen?
Mas o momento em que o visual e a sonoridade punk mais se conectam no filme é durante o desfile ao som de I Wanna Be Your Dog, dos Stooges, cuja versão original foi produzida por John Cale, do Velvet Underground. Com um cover na voz de John McCrea, intérprete de Artie, assistente de Cruella, são os acordes do single de estreia da banda de Iggy Pop que marcam um dos grandes momentos do filme: o aparente primeiro grande ato vilanesco de Cruella, que parece usar o famoso casaco de pele de dálmatas enquanto rouba toda a atenção que deveria ser direcionada à estreia da nova coleção de moda da Baronesa.
Apesar da trilha grandiosa, que ainda conta com covers de Led Zeppelin e Beatles feitos por Ike & Tina Turner — a versão de Whole Lotta Love da dupla merece muita atenção — e instrumentais de Nicholas Britell, responsável pelas trilhas instrumentais indicadas ao Oscar de Moonlight: Sob a Luz do Luar e Se a Rua Beale Falasse, de Barry Jenkins, o filme peca justamente por isso: seu excesso de músicas.
É como se a Disney resolvesse mostrar que teve condições de licenciar todas aquelas músicas e decidisse usá-las de uma só vez, no que se tornam sequências intermináveis de micro vídeo clipes. Existem até momentos em que uma música mal acaba de tocar para outra começar logo na sequência.
Isso pode ser uma herança de Craig Gillespie, diretor do filme que também foi responsável pelas inúmeras e intermináveis sequências musicais e tentativas de gerar apego pop em Eu, Tonya, ou apenas ser uma tendência que se tornará parte do mundo cinematográfico agora — foi o que aconteceu na segunda temporada de The Umbrella Academy, por exemplo.
Além disso, a obviedade das escolhas, que parecem ter sido feitas para deixar claro para o espectador o significado das cenas, é entediante. Sympathy for the Devil tocando enquanto Cruella tem seu grande final e suas vilanias justificadas, mesmo quando todos sabemos que ela se tornará a vilã que conhecemos em 101 Dálmatas? É uma escolha pouco surpreendente, chegando até mesmo a cortar o clima de trunfo que deveria se sentir nesse momento.
O encerramento do filme conta com a versão já conhecida da música tema de Cruella, cantada dessa vez por Kayvan Novak, que interpreta o advogado Roger, conhecido por ser o dono de um dos dálmatas perseguidos por Cruella no filme de 1961, e uma releitura interpretada por Florence + The Machine, seguindo a tendência da Disney de escolher grandes nomes da música contemporânea para cantar as músicas temas de seus live actions e dando a chance de Florence Welch entrar na corrida do Oscar 2022.
Cruella está disponível na Disney+ e nos cinemas. Mas, lembre-se: estamos no meio de uma pandemia. Talvez não seja uma boa ideia sair de casa e arriscar sua vida para ir ao cinema.