Era 1982 quando uma banda chamada Barão Vermelho lançava o seu primeiro disco e começava a conquistar o coração dos brasileiros. Formada por cinco homens, Cazuza, Frejat, Maurício, Guto e Dé foram responsáveis por transformar essa banda carioca em uma das mais influentes no cenário do rock nacional dos anos 80, emplacando hits e arrastando – literalmente – multidões pelo país afora. Após participar do lançamento de três discos da banda como vocalista, produtor, compositor e, talvez, muitas outras coisas as quais nem me cabe dizer aqui, Cazuza embarcou na sua carreira solo. E é dele o qual tentaremos entender aqui a importância para a música e para a sociedade brasileira da época.
O imaginário social de hoje e das pessoas mais jovens que não viveram na mesma época de Cazuza, nascido em 1958 e que faleceu em 1990 em decorrência de AIDS, talvez se limite à sua importante contribuição ao rock nacional com músicas consagradas em sua voz. Suas canções, nem sempre autorais mas sempre atreladas ao seu jeito único de cantar, traziam muito do que o país vivia na época. Um país saindo e recém saído da Ditadura Militar (1964 – 1985), que censurou a liberdade de expressão da época e não concedeu nem sequer licença poética a quem queria fazer arte no país – aqui, me limitando apenas a descrever o cenário cultural do Brasil na época.
“Exagerado”, “O tempo não para”, “Ideologia” e “Pro dia nascer feliz” são letras até hoje consagradas na cabeça dos brasileiros e que atravessaram gerações. Não se limitam apenas a quem foi jovem naquela época ou que acompanhou seus lançamentos. São trilhas de novelas, filmes e canções regravadas até hoje. Só isso já diz muito do legado deixado pelo músico, mas podemos ir além ao perceber que suas músicas são até hoje atuais. No auge dos anos 80, o discurso era pautado em um literal “não discurso”, o que refletia em um “fazer algo diferente”. Em um contexto ditatorial, a mensagem era a resistência.
Hoje percebemos a atualidade de suas letras e o modo de cantar imponente quando contextualizamos o período em que vivemos. Um conservadorismo exacerbado, regido por uma extrema-direita que está no poder em um país tomado por um negacionismo frente a uma pandemia mundial que mata milhares de pessoas por dia, é talvez um pouco semelhante ao mesmo sentimento que o cantor passava ao interpretar “Ideologia”, cantando aos sete ventos uma ideia de pessimismo com o que estava acontecendo na sua vida, nas suas relações amorosas e na política do país.
Ainda pensando no contexto da canção de “Ideologia”, que trago aqui exatamente como um gancho para pensar o que representou a totalidade do seu trabalho no cenário social brasileiro, é importante ressaltar que a canção foi escrita logo após ele descobrir que era portador do vírus HIV. Na época, exatamente nos anos 80, o Brasil (e o mundo) viveu uma epidemia do vírus causador da AIDS. Quase nada se sabia sobre a doença e como tratá-la, o que acarretou em um número de mortes muito grande de quem era portador.
Até hoje não existe uma cura para a doença, mas atualmente a realidade é outra. A medicina avançou muito nos estudos em relação a AIDS, então o que acontece hoje é uma vivência totalmente mais favorável do que quando a doença era um mistério para a ciência. O que talvez não tenha mudado tanto é o preconceito em torno de quem é portador do vírus.
Por muitos anos, com resquícios atuais de pessoas que ainda seguem esse ideal, a AIDS foi associada à população LGBT, mais especificamente aos homossexuais, por ser uma doença sexualmente transmissível. Cazuza, que já era um artista visto como uma pessoa rebelde e polêmica, teve seu estigma piorado aos olhares do conservadorismo que tanto reprimia quem possuía a doença. Entretanto, por meio da sua palavra e da sua conduta frente à realidade que ele vivia, ele foi capaz de abrir portas da grande mídia para falar sobre o assunto e mostrar para os próprios portadores da doença que não era aquele estigma que os definia. O fato de ser portador de HIV não o diminui como artista, como pessoa e nem como cidadão. E era essa a maior batalha que os soropositivos viviam naquele início – além da própria doença.
Talvez nem o fato dele ser portador de HIV e usuário de algumas drogas – da qual falaremos mais à frente – tenha chocado tanto alguns brasileiros como a sua declaração de que era bissexual. Um país, como já dito anteriormente, totalmente conservador, fechado para as ideias de quem não seguia o famoso padrão heterossexual, jamais apoiaria pessoas que se assumissem abertamente homossexuais ou bissexuais, como foi o caso dele. Segundo a sua mãe, Cazuza revelou a sua orientação sexual para ela aos 18 anos, após pressioná-lo a fala e ele defender que não era “viado”. “Eu por acaso tenho quatro patas e uma galhada na cabeça. Ele disse ainda: vamos dizer que sou bissexual, mas não se meta na minha vida não, porque eu sei levá-la muito bem e estou fazendo a escolha que eu quero”, revelou sua mãe Lucinha em entrevista.
Entretanto, contrariando as expectativas de um cenário que poderia ser totalmente diferente com ele do que foi realmente, o país não necessariamente o rejeitou pelo fato de ser bissexual. Ele foi acolhido enquanto artista renomado e que representava muita gente, mas o acolhimento em relação a esse assunto muito ficou restrito ao seu público que o apoiava incondicionalmente – e sua família. Aqui, não podemos deixar de ressaltar a identificação e libertação que foi, aos bissexuais de sua época, ouvir um artista renomado nacionalmente dizer que era bissexual, o qual namorou o também cantor Ney Matogrosso, que na mesma época fazia muito sucesso sendo vocalista da banda Secos e Molhados. Novamente, dessa vez em outro contexto, ele permitiu que muita gente tornasse a relação mais humana com a população LGBT, que na época era conhecida pelo termo GLS.
Para finalizar, eu não poderia deixar de falar da relação de Cazuza com as drogas, que é tão comentado até hoje quando se fala sobre ele. Eu deixei para o final exatamente porque eu não queria resumir (ou diminuir) a existência, potência e importância de Cazuza ao seu uso de drogas. É inegável que esse fato foi um marco relevante de sua vida e que muitos tratam como sendo o auge de sua rebeldia e contravenção na sua trajetória, mas até por meio desse fato é possível entender a pessoa que foi Cazuza. Por isso, vou me ater a uma declaração de sua mãe que definiu em poucas palavras essa relação em entrevista para a Revista TPM:
“Um dia achei maconha no quarto dele. Nossa, dei um escândalo. Chorei, joguei a maconha na privada, saí gritando: “Meu filho é um maconheiro, vou me suicidar”. E ele: “Mãe, deixa de ser louca, onde já se viu desperdiçar maconha de alta qualidade, isso custa uma nota”. Ele era assim [risos]. Com o tempo, percebi que o Cazuza não era um drogado. Ele usava a droga. É muito diferente. O ruim é quando a droga usa você.”
Cazuza foi tudo isso. Falou o que queria falar e foi contrarregra em suas músicas. Foi exagerado, seguiu ideologias, fez o dia nascer feliz para muita gente (e faz até hoje) e clama, grita e explicita em seu legado, assim como diz a sua música e também os dizerem em seu túmulo: “o tempo não para”.
*Cazuza nasceu no Rio de Janeiro no dia 4 de abril de 1958 e morreu, vítima da AIDS, aos 32 anos, no dia 7 de julho de 1990, um ano após declarar publicamente que era soropositivo. As informações trazidas no texto não necessariamente seguem uma ordem cronológica dos fatos.