Os séculos de obras literárias, produções cinematográficas e séries de terror nos ensinaram uma coisa: o medo é algo subjetivo.
Partindo das tradições religiosas e folclóricas relacionadas aos temas de morte, vida após a morte e outras questões sobrenaturais, passando por obras de autores clássicos como Edgar Allan Poe, Sheridan Le Fanu, Mary Shelley e Bram Stoker, e chegando ao terror no mundo do cinema e da televisão — com produções que criam situações que tem como intenção causar pavor ou ansiedade ao espectador ou adaptam os personagens e histórias criados por grandes nomes da literatura para as telas —, o gênero tem como seu principal objetivo usar temores primários para, com a ajuda de elementos como o macabro, o gore, o sobrenatural, fobias e o temor do desconhecido, causar reações emocionais que, muitas vezes, são negativas nos espectadores.
Quando se fala de cinema e televisão, o gênero do terror não conta só com o recurso visual para proporcionar essas reações. Neles, a música é utilizada como ferramenta para a composição da obra.
Mas como e por que isso acontece?
Essencialmente, a música é utilizada em trilhas sonoras como maneira de influenciar a narrativa, criando uma atmosfera própria e guiando o espectador para sentir determinadas emoções ao assistir essas obras.
Por isso, não é surpresa que em filmes de terror a ideia da trilha seja gerar a sensação de desconforto em quem assiste, servindo para aumentar momentos de tensão ou criar o clima que antecede o jumpscare.
E, para criar as músicas necessárias para essas produções, existem recursos musicais que são usados pela maior parte dos compositores.
Dissonância Sonora
Ao usar elementos que subvertem as maneiras clássicas de composição, a dissonância sonora gera a quebra da harmonia, melodia ou tonalidade de uma música, causando um som que muitas vezes é classificado como “desagradável” pelo ouvinte.
Um dos mais conhecidos exemplos disso é a música da famosa cena do chuveiro em Psicose, de Alfred Hitchcock, onde a trilha criada por Bernard Herrmann utiliza de dissonâncias e ostinatos — nome dado a contínua repetição de um determinado som a uma altura constante — para criar a sensação aflitiva ao mesmo tempo em que simula as facadas dadas por Norman Bates em Marion Crane. A sequência e a recorrência de notas agudas acabam formando uma melodia aterrorizante que ajuda a produzir o efeito assustador necessário para a cena, uma das mais conhecidas e referenciadas da história do cinema.
Porém, mesmo com o uso da dissonância sonora como um dos meios de, junto às imagens, causar desconforto e medo no espectador, existem exemplos de trilhas sonoras compostas por outra coisa que é incômoda para muitos: o silêncio.
Halloween – A Noite do Terror, dirigido e musicado por John Carpenter, usa o silêncio como elemento narrativo em cenas onde só é possível ouvir a respiração de Michael Myers e Um Lugar Silencioso, filme de 2018 dirigido por John Krasinski, o utiliza para criar a atmosfera de tensão em sua história.
Diabolus in Musica
Entre as diversas influências utilizadas para a composição das trilhas sonoras de filmes de terror, destaca- se a música européia medieval. E há uma nota em especial que demonstra isso.
O trítono, uma nota formada pelo intervalo de três sons entre duas notas, foi batizado pelo compositor alemão Andreas Werckmeiser de Diabolus in Musica (em livre tradução, Diabo na Música) já que, por formar um som que a maioria das pessoas considerava angustiante, era uma nota que era pouco utilizada nas composições da Igreja da Idade Média.
Um dos registros mais antigos do uso trítono é na composição Ordo Virtutum, feita pela freira Santa Hildegarda de Bingen em 1151, na qual a nota aparece em momentos em que o Diabo é citado, como é possível ouvir no minuto 2 do vídeo a seguir:
Por seu efeito sombrio (e por que não pela referência ao Diabo em seu nome popular?), não é difícil encontrar o trítono nas músicas de diversos filmes de terror, como no tema de abertura de Corra!, de Jordan Peele.
Dies Irae
O Iluminado, O Exorcista e O Estranho Mundo de Jack não possuem apenas o sobrenatural em comum. Suas trilhas sonoras também contam com uma semelhança: a presença da sequência de notas usadas no Dies Irae, um hino religioso em latim do século XIII. Utilizado no Réquiem, a missa católica para os mortos, o hino — cujo título pode ser traduzido como “Dia da Ira” — possui uma melodia inicial de quatro notas que geralmente é usada nas músicas para acentuar momentos de drama, assustadores ou tristes.
É fácil identificar essas mesmas notas logo no início do tema de O Iluminado, na música tema composta por Gerald Fried para The Return of Dracula ou em toda a duração de Making Christmas, trilha de O Estranho Mundo de Jack, uma clara homenagem de Danny Elfman ao Dies Irae.
Existem outros exemplos famosos do uso da melodia do Dies Irae em filmes que não são de terror. Into the Unknown, música tema de Frozen II, possui referências a melodia, assim como a cena onde Mufasa morre em Rei Leão e a cena onde a varinha escolhe Harry em Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Quando frequências se chocam
Neurologicamente, nos incomodamos com duas frequências musicais entrando em choque. Quando gritos são colocados repentinamente em meio a músicas, sussurros e passos são ouvidos por perto ou sons de objetos comuns no nosso dia a dia se tornam mais altos do que deveriam ser, o cérebro responde ativando áreas que servem para a proteção, já que esses sons despertam inconscientemente os sentidos de alerta e pânico.
Por isso, o remake de 2020 de O Homem Invisível constrói sua atmosfera de tensão ao inserir o som de elementos tipicamente domésticos – como chaleiras e câmeras de vídeo – interferindo em momentos de silêncio, mixando a altura desses sons para que eles tenham o mesmo volume das falas e outras trilhas utilizadas no filme. Em A Maldição da Residência Hill, a música melódica dos Newton Brothers se torna apavorante ao ser interrompida por murmúrios, estrondos e gritos dos personagens, enquanto o tema homônimo do filme Suspiria (1977), composto pela banda italiana Goblin, conta com sussurros tenebrosos misturados com o instrumental.
Sikiliza Kwa Wahenga
Outros elementos comuns nos filmes de terror são os corais e vocais, geralmente encontrados cantando em linguagens que não correspondem ao idioma falado no filme.
O Fortuna, um dos 25 movimentos da cantata Carmina Burana composta por Carl Orff é um dos exemplos disso. A música está presente em trailers e trilhas de filmes de terror ou dramáticos e a sensação angustiante causada por ela pode ter origem justamente no idioma na qual ela é cantada: latim.
Não que composições em latim sejam mais aterrorizantes do que músicas cantadas em inglês ou português, mas como o compositor Michael Abels, responsável pelas trilhas sonoras de Corra! e Nós, notou em uma entrevista para a CBS: “Quando você não consegue entender o que está dizendo, isso atrai seus próprios medos de tornar as coisas ainda piores do que realmente poderiam ser”.
Isso pode ter conexão com as próprias histórias contadas pelo cinema estadunidense. É fácil encontrar produções de décadas anteriores, sejam elas de terror ou outros gêneros, feitas no contexto de Guerra Fria e da reafirmação da nacionalidade estadunidense anticomunista da época, onde os vilões, monstros ou qualquer outro antagonista são estrangeiros, refletindo o medo que a sociedade estadunidense da época tinha de “invasores” de outros países. Dois dos exemplos mais famosos do cinema são o Drácula e a Múmia, que fazem parte do universo chamado de “Monstros da Universal“.
Esse pavor foi bem utilizado pelo próprio Michael durante a composição da trilha sonora dos filmes de Jordan Peele. Em Corra!, Sikiliza Kwa Wahenga, música tema do filme, é cantada em suaíli, um idioma falado em países da África como Malawi, Madagascar e Quênia. E não é apenas o idioma que é usado como maneira de gerar angústia no espectador: quando se descobre a tradução da letra, que é “Fuja! Ouça os mais velhos, ouça os sábios. Corra!”, a sensação de terror se torna ainda maior.