No fim dos anos 80, um duo alemão ganhou o mundo após o lançamento de seu primeiro CD. Com uma mistura de reggae e dance music, o Milli Vanilli foi alçado ao status de estrela mundial graças ao sucesso de faixas como “Baby Don’t Forget My Number”, “Girl I’m Gonna Miss You” e “Blame It On the Rain”. Aqui no Brasil, a música de maior sucesso acabou sendo “Girl You Know It’s True”, que seguia bem a linha das demais faixas do debut, All Or Nothing.
Entre 1988 e 1990, Fab Morvan e Rob Pilatus eram os reis do pedaço. Todo mundo queria o Milli Vanilli, para a alegria do produtor Frank Farian, que era a cabeça pensante do projeto. Antes de Fab e Rob se juntarem ao projeto, Frank reuniu uma banda formada por Charles Shaw, John Davis e Brad Howell, além de duas cantoras, as gêmeas Jodie e Linda Rocco. Eles formariam o Milli Vanilli mas, segundo Frank, o grupo seria invendável, apesar do talento. Foi aí que Morvan e Pilatus, dois dançarinos aspirantes a modelos, apareceram e se tornaram a cara do projeto.
All Or Nothing foi lançado e, apesar de críticas quanto ao som parecido com projetos anteriores de Farian, a popularidade do Milli Vanilli foi crescendo na Europa. Foi quando o produtor resolveu pegar o álbum, recriar algumas faixas extras, colocar o nome de Girl You Know It’s True e lançar nos Estados Unidos. Foram cinco singles lançados, com “Girl You Know It’s True” alcançando a 2ª posição nas paradas americanas, “All or Nothing” ocupando o 4º posto e os 3 primeiros lugares “Baby Don’t Forget My Number”, “Girl I’m Gonna Miss You” e “Blame It On the Rain”. Tudo ia bem, a adoração do público era incrível, os shows estavam lotados e o grupo tinha recebido uma indicação ao Grammy como artista revelação. Aquele era o projeto de maior sucesso de Frank Farian e nada de estranho poderia acontecer. Nada.
Em julho de 1989, a banda tinha uma apresentação ao vivo na cidade de Bristol, nos Estados Unidos. Era mais um show normal para o grupo, com direito a 80 mil pessoas esperando para ouvir os sucessos ao vivo e ainda a presença da MTV americana, que gravaria o show para um especial.
O cenário era dos melhores. Era a consagração do Milli Vanilli e tudo corria bem, até que o grupo começou a tocar “Girl You Know It’s True”. A fita cassete que continha as vozes da música sofreu algum dano, travou e o sistema de som do local ficou repetindo inúmeras vezes a frase “Girl You Know It’s…”. Pela primeira vez, ficou evidenciado o playback da dupla, o que fez com que Fab ficasse desesperado e saísse correndo do palco.
Ainda que o episódio não tivesse abalado a confiança dos fãs, que continuaram comprando CDs, ouvindo as músicas e indo aos shows como se nada tivesse acontecido, o episódio gerou uma suspeita de fraude em torno do grupo.
As suspeitas aumentaram quando o rapper Charles Shaw declarou a um repórter de New York que a dupla não era responsável pelas vozes em nenhuma das faixas do álbum. Dias depois, Shaw retirou as acusações e fingiu não ter falado nada a respeito. Até hoje, acredita-se que Frank Farian pagou U$1,5 milhão a Shaw para que ele não falasse mais nada sobre o assunto. Ainda que as críticas continuassem, as coisas pareciam ter voltado aos eixos. Em fevereiro de 90, o Milli Vanilli levou para casa o Grammy de Artista revelação e, durante os meses que se seguiram, o primeiro CD continuava quebrando recordes de venda. Tudo parecia superado, inclusive com Rob e Fab já pensando em seu novo CD.
O Milli Vanilli se tornou maior do que Frank Farian poderia imaginar e isso influenciou em sua relação com a dupla. Enquanto ele tentava administrar o ego de Rob e Fab e pensar no futuro, a dupla se comparava com Bob Dylan, Mick Jagger, Paul McCartney ou Elvis Presley em entrevistas e prometiam um trabalho ainda maior para o futuro. Foi então que, em 15 de novembro de 1990, Frank não aguentou, convocou uma entrevista e abriu o jogo: As vozes gravadas no álbum de sucesso de Milli Vanilli não eram as de Rob Pilatus e Fab Morvan, mas de Charles Shaw, John Davis, e Brad Howell. Como Farian precisava vender o projeto, ele se aproveitou da imagem de Rob e Fab e do fato deles serem bons dançarinos (???) para criar o produto final e colocar no mercado. Segundo Frank, a decisão de revelar tudo veio da dificuldade de administrar a dupla e da pressão que os dois estavam fazendo para cantar no novo álbum.
Rob e Fab com o produtor Frank Farian, ao centro.
Com a revelação, tudo foi por água abaixo. Contrato encerrado com gravadora, Grammy revogado (com a dupla tendo que devolver as estatuetas recebidas) e reembolso de, pelo menos, dez milhões de cópias de seus álbuns vendidos até então. Aquilo caiu como uma bomba no cenário musical e devastou a vida de Fab, Rob e Frank, que tentou dar continuidade ao projeto, já que o novo álbum estava gravado e pronto para ser lançado. Com o nome de The Real Milli Vanilli, os membros verdadeiros passaram a ser destacados e o álbum acabou recebendo o nome de The Moment Of Truth, sendo lançado no começo de 1991 na Europa. Com três singles, “Keep On Running,” “Nice ‘n Easy” e “Too Late (True Love)”, o resultado não foi nada expressivo. No mercado americano, Farian excluiu qualquer associação com o Milli Vanilli. Por lá, o projeto recebeu o nome de Try ‘N’ B e o disco ganhou três faixas extras. Por lá, a recepção foi positiva.
Enquanto Frank tentava se reerguer, Rob e Fab seguiam escondidos. Depressivo, abusando da mistura de álcool e remédios e ainda viciado em cocaína, Pilatus chegou a tentar suicídio em novembro de 91 ao cortar os pulsos e tentar se jogar da janela do hotel Sunset Strip, em Los Angeles. Foi contido pela polícia enquanto gritava que importunaram a sua família. “Estou farto disso. Eu não queria magoar ninguém”. No entanto, a dupla acreditava que podia cantar e seguir a carreira. Se mudaram para Los Angeles, assinaram um contrato com o Joss Entertainment Group e lançaram, em 1993, o álbum Rob & Fab. Morvan era a voz principal da dupla, enquanto Pilatus era responsável pelos raps das faixas. O resultado foi amplamente criticado pela mídia e o trabalho rendeu apenas um single, “We Can Get It On”.
Com o resultado, Pilatus voltou a entrar em depressão e a abusar das drogas. Sem dinheiro, Pilatus chegou a ser preso sendo acusado de assaltos, agressão, vandalismo, e tentativa de roubo de um carro. Condenado, passou três meses preso na Califórnia e só saiu de lá após Farian assumir o compromisso de pagar uma clínica de reabilitação para ele. Era o início de uma reaproximação e, em 1997, Farian concorda em produzir um novo álbum do Milli Vanilli, com Morvan e Pilatus nos vocais. Frank reuniu um time bom por trás, garantiu os vocais a dupla e produziu Back and in Attack. Com a turnê promocional engatilhada, Rob Pilatus foi encontrado morto em abril de 98 na cidade de Frankfurt, na Alemanha, em consequência de uma overdose após misturar álcool e pílulas. Com a fatalidade, Back and in Attack acabou não sendo lançado.
– O CONCEITO “MILLI VANILLI”
Com tudo o que aconteceu, era normal que o Milli Vanilli se tornasse referência para a cultura popular. Entre citações em filmes, seriados e músicas de artistas como 50 Cent e Outkast ou a história do cantor sertanejo Johnny Percebe (???) na novela Torre de Babel, todas evidenciavam o fato deles terem enganado todo mundo vendendo uma história que não era a real.
Contudo, a referência mais legal de toda a história foi protagonizada pelo próprio Milli Vanilli em um comercial de chicletes, que começa perguntando “até quando o sabor do chiclete dura?” enquanto a dupla está cantando uma ópera. Até que a ópera falha e eles são pegos no playback.
– O QUE PODEMOS TIRAR DISSO?
De lá pra cá, Morvan lançou um álbum em 2003, intitulado Love Revolution, trabalhou como locutor e DJ, mas nenhuma das tentativas deu resultado. Em 2012, ele trabalhava em um segundo disco, que até hoje não foi lançado. Considerada por muitos como a maior farsa da história da música, o Milli Vanilli chegou a ter cogitada a possibilidade de sua história virar filme, tendo o roteiro produzido por Jeff Nathanson (O Terminal e Prenda-
Ainda que a fraude não mereça ser recompensada, o Milli Vanilli acabou rendendo uma das histórias mais interessantes do cenário musical e, se for analisar friamente, não é algo que está tão longe dos nossos ouvidos atualmente. Ainda que hoje em dia as coisas não sejam feitas de forma tão descarada, o pensamento de Farian lá em 1988 de que “o produto precisa ser atrativo para ser vendido” ainda faz parte do que consumimos (ou nos é oferecido) musicalmente.
Candidatos a Milli Vanilli temos muitos, mas o que não temos é produtor que queira dar a cara a tapa e ver a sua carreira ir para o ralo, da forma que Farian fez, certo?